Valter Hugo Mãe

Um livro, uma comunidade


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Na semana que agora começa estarei em Oeiras para uma iniciativa brava que sinto ter ganas de revolucionária, sonhada há anos pelo bibliotecário Gaspar Manuel Matos. A ideia de convidar uma comunidade inteira para a leitura e debate de um mesmo livro é modo de resistir à ligeireza com que cada vez mais adquirimos informação e nos bastamos com o conhecimento superficial ou apenas lúdico. Em Oeiras mandou-se imprimir uma edição especial, única, de “a máquina de fazer espanhóis”, e ali estarei para uma série de encontros com quantos quiseram ou querem ler e ponderar acerca dos temas que o livro aborda.

Acontece isto como uma espécie de super-comunidade de leitores, potenciada ao máximo pela força da Autarquia, que reconheço ser uma das que mais agita sua rede de bibliotecas. Algumas terras são assim, colocam nas bibliotecas e no universo do livro um empenho raro. Julgo que a primeira vez que me convidaram para Oeiras foi há mais de 20 anos, estava eu nos primeiros passos enquanto autor publicado e havia um prémio de poesia para o qual alguém quis que eu fosse um dos jurados. Entendi, então, como é vibrante e constante o bulício em torno da Literatura em Oeiras. E assim segue sendo tanto tempo depois.

É, de facto, revolucionária a intenção de convencer as pessoas a ocuparem-se de um livro para a mais premente actualidade. Um livro que sirva de ponto de partida para a inclusão da voz de cada um, desde os seniores até aos alunos nas escolas, passando por quem manda e por quem obedece, por quem inspira e por quem é inspirado, por quem acompanha e por quem vai sozinho. Colocar um livro na esteira de todas as conversas é alimentar a comunidade a partir de uma maturação íntima. Fazer com que a sensibilidade de cada um importe, porque nenhum livro escapa impune à imaginação de cada leitor, à dimensão mais pessoal e subjectiva de cada leitor.

Com os anos, colecciono episódios acerca de cada livro que escrevo. Testemunhos que as pessoas me trazem acerca de como os meus livros puderam interferir nas suas vidas. Este romance, “a máquina de fazer espanhóis”, com quase 30 tiragens distintas em Portugal, é um dos que mais impacta em quem teve a simpatia de me ler. Sei bem que o impacto está em certa força poética mas também na frontalidade com que o envelhecimento aparece, solicitando de todos o compromisso com o que pode sobrar de humanidade. Quero dizer, como nos posicionamos em relação à institucionalização dos mais velhos, como nos reforçamos contra o abandono dos mais velhos. Não é, por isso, um livro fácil. Nunca julguei poder escrever para leitores preguiçosos ou medricas. Quis sempre ler autores fortes que me obriguem a crescer. Acredito que este livro opera pela ternura com que nos manda encarar uma tragédia do nosso tempo. Uma tragédia que se anuncia muito pior para os tempos que virão.

A semana inteira, em tantos lugares e com tanta gente, estarei por isso em Oeiras. Será uma honra e uma alegria ajudar a dar corpo a esta ideia que agora arranca e que, espero, venha a nutrir outros livros, outros autores, no seio de uma comunidade cada vez maior.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)