O tempo e o contexto mudam muita coisa. Até os hábitos de sono. Hoje dormimos pouco e quase sempre de forma contínua, mas há relatos e experiências que mostram que talvez nem sempre tenha sido assim. Antes da Revolução Industrial, da luz elétrica e do uso do relógio, muitos dos nossos antepassados dormiram por dois turnos. Porquê? Porque podiam.
Em meados dos anos 1980, o historiador americano A.Roger Ekirch passava dias inteiros enfiado no Public Records Office, em Londres, a fazer pesquisa para um livro sobre hábitos noturnos antes da Revolução Industrial. Um dia, debruçado sobre um documento, franziu a testa e cerrou os olhos, de surpresa e dúvida.
“Era um depoimento criminal, dado em 1697, por uma jovem inglesa acerca da morte da sua mãe”, detalha o historiador e investigador da Universidade de Virginia Tech (EUA), que ainda hoje adora recordar este momento. A jovem Jane Rowth declarava que os dois homens com quem a mãe havia saído naquela noite tinham chegado pouco depois de elas acordarem do “primeiro sono”. Isso intrigou-o. O que parecia ser claro para quem falava e para quem ouvia, na altura, dispensando explicações, não era para ele, quase 300 anos depois.
Pegou na expressão e começou a pesquisá-la em peças de teatro, poemas e outros textos. Com o tempo, acabou por encontrar mais de 2000 referências – algumas da Roma e Grécia Antigas – sobre o “primeiro sono” e o “segundo sono”, que apontavam para a existência de um hábito desconhecido até então: o sono bifásico noturno, um padrão de sono dividido em dois momentos, intercalados por um período de vigília noturna de uma a três horas, durante o qual as pessoas faziam outras coisas que não exigissem muita iluminação, como conversar, comer, rezar ou ter sexo.
O historiador estava convencido que na Europa e na América pré-industriais o sono bifásico seria habitual – talvez até o mais habitual – mas os seus documentos eram históricos. Em termos médicos nada se sabia sobre o assunto. E então, em 1995, ao ler o The New York Times, encontrou um artigo sobre uma experiência conduzida anos antes por Thomas Weir, um psiquiatra e especialista do sono, do Instituto Nacional de Saúde Mental, dos Estados Unidos. Nele explicavam que 15 homens que durante a noite não tinham qualquer acesso a luz artificial, ao fim de três semanas, começaram a revelar padrões de sono segmentado, entre eles, o padrão de sono bifásico noturno.
O título do artigo científico que Thomas Wehr havia publicado pouco antes no Journal of Sleep Research era expressivo: “In short photoperiods, human sleep is biphasic”. (Com fotoperíodos curtos, o sono humano é bifásico). “O propósito original da minha experiência era determinar como é que a fisiologia e o comportamento humano respondem às mudanças sazonais da duração do dia”, começa por explicar-nos Thomas Wehr. Para isso, pegou numa série de jovens voluntários e privou-os totalmente de luz artificial, para simular as condições de luminosidade de um inverno rigoroso sem eletricidade. Após três ou quatro semanas, o padrão de sono dos participantes tornou-se segmentado: alguns dormiam três ou quatro horas ao início da noite, mantinham-se acordados por uma ou duas e depois retomavam o sono por mais algumas horas. Outros dormiam algumas horas durante a noite e outras durante o dia. Então, o investigador pôs em cima da mesa esta hipótese ou teoria: o sono bipartido – ou bifásico – foi, em tempos, o nosso padrão de sono habitual.
Porque acordamos à noite?
A cronobióloga e somnologista Cátia Reis, investigadora na área da regulação dos ritmos circadianos, discorda. Refere que “há, sem dúvida, relatos desse comportamento, mas não há nada que permita afirmar que esse era ‘o’ padrão de sono normal”. Explica, no entanto, que há razões fisiológicas para que ele possa ocorrer: dormimos aproximadamente entre quatro e cinco ciclos de sono, cada um de 90 minutos, no final de cada um dos ciclos o sono é mais leve e podemos ter um despertar. “Hoje, quando isto acontece, a pessoa sente-se pressionada para adormecer de seguida porque o despertador toca na manhã seguinte, mas quando a organização social era diferente e não havia um relógio ao qual obedecer, nos períodos de sono mais leve, quando as pessoas acordavam, era natural que aproveitassem para fazer coisas antes de voltarem a adormecer”, explica a professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Instituto de Saúde Ambiental, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Por outro lado, lembra que o sono bifásico não é assim tão invulgar mesmo hoje em dia. Desde logo, nos países onde há uma tradição de fazer a sesta, como Espanha. “E, mesmo em Portugal, atualmente, entre os trabalhadores do campo, há muito esse hábito: as pessoas levantam-se para ir trabalhar muito cedo, quando o sol começa a nascer e, depois, durante o período de calor em que não podem ir para ao campo, acabam por fazer uma sesta”, exemplifica. Por outro lado, muitos trabalhadores por turnos fazem também dois períodos de sono separados.
Apesar de acreditarem que este terá sido em tempos o padrão de sono mais habitual dos nossos antepassados, Thomas Wehr e Roger Ekirch não fazem uma apologia à alteração do padrão de sono atual. “No que diz respeito ao propósito principal do sono, que é promover o nosso bem-estar mental e físico, há boas razões para acreditar que o sono ininterrupto durante a noite é o que melhor alcança esse objetivo”, frisa Roger Ekirch.
Já Thomas Wehr, o grande ganho que destaca da sua experiência é que ela possa tranquilizar muita gente com problemas de sono. “Hoje, quando as pessoas acordam durante a noite, ficam ansiosas e preocupadas se conseguirão adormecer novamente e ter horas suficientes de sono até acordarem de manhã”, refere. E essa ansiedade só agrava o problema, criando uma propensão para a insónia a meio da noite. “Se as pessoas entendem que acordar durante a noite é um padrão normal de sono que os nossos ancestrais consideravam como comum, tendem a não ficar ansiosas e esperam pacientemente, com confiança, que voltarão a dormir. Por outras palavras: elas reinterpretam a experiência de acordar durante a noite como uma característica do sono normal, em vez de um sintoma de insónia”, esclarece. E isso muitas vezes é o suficiente para resolver o problema.
Uma droga chamada luz
Numa coisa toda a gente está de acordo: a luz influencia os nossos ciclos e hábitos de sono. O historiador Roger Ekirch defende que o fim do hábito do sono bifásico e a transição para o sono consolidado, contínuo, a que todos aspiramos hoje, aconteceu de forma gradual, principalmente durante o século XIX. Alega que houve duas grandes causas para essa transição, ambas decorrentes da Revolução Industrial. A primeira foi cultural: “Com a mudança nas atitudes em relação ao sono devido à importância de valores como a eficiência, a produtividade e o lucro. O sono, para um número crescente de pessoas, principalmente da classe média, tornou-se um mal necessário que deveria ser limitado a um único intervalo”, defende.
A segunda, mais relevante, foi a rápida expansão da iluminação artificial, primeiro com o gás e, posteriormente, com iluminação elétrica, nas ruas e dentro de casa. Isso, por um lado, “encorajou horários de ir dormir mais tardios, sem alteração no horário de acordar, o que auxiliou na compressão do sono num único período”. Por outro, a iluminação artificial alterou o relógio biológico humano e o ciclo sono-vigília tão sensível à luz ou à ausência dela.
O sono, explica Cátia Reis, é a conjugação de dois mecanismos: “Um deles é um processo homeostático [de equilíbrio orgânico] chamado pressão de sono”, que não é mais do que a necessidade que temos de dormir. De manhã, depois de uma noite bem dormida, a pressão de sono será pouca ou nenhuma, ao longo do dia ela vai aumentando e só diminui quando dormimos. O outro é o mecanismo circadiano, o nosso relógio biológico que está alinhado com os ciclos de luz a cada 24 horas.
É à noite que começamos a produzir melatonina, a hormona do sono. Mas para a produzirmos o nosso cérebro precisa de perceber que é de noite e isso é mais difícil com a quantidade de luz artificial – de candeeiros, televisões e smartphones – a que estamos sujeitos. “A luz faz suprimir a produção de melatonina porque ela é só produzida na escuridão. É por isso que não devemos estar expostos a fontes de luz à noite, explica a investigadora. “Porque estamos a dizer ao nosso cérebro que é de dia e a dessincronizarmos um dos mecanismos essenciais do sono”.
Roger Ekirch gosta de citar, a esse propósito, o cientista do sono Charles Czeisler, da Universidade de Harvard (EUA): “Todas as vezes que acendemos uma luz, estamos inadvertidamente a usar uma droga que afeta a forma como dormiremos”.