As luzes começam a ser ligadas nas ruas e avenidas, os pinheiros montados nas casas e a marcação de jantares já preenche muitas agendas. Mas ainda que sejam os sentimentos e comportamentos positivos os mais associados a esta quadra, há também outro lado a reter.
Pensar nas prendas para o pai, para a irmã e para o sobrinho. Lembrar de ligar àquele amigo que não vimos durante o ano, mas a quem gostamos de reforçar, na quadra natalícia, o quanto gostamos dele. Marcar jantar com os colegas do trabalho. E almoço com os primos afastados. Preparar a ceia, pensando no que cada um dos convidados mais gosta.
As festividades do Natal, quer seja o próprio dia ou a sua preparação um mês antes, são fortemente associadas a ideias positivas: de partilha, felicidade, amizade, empatia, entre outras. Mas ainda que esta seja a imagem ideal (e idealizada pelas empresas para gerar consumo), há também os sentimentos contrários, provocados pelo excesso e pelas expectativas geradas em torno desta quadra. Independentemente de nos deixar felizes ou em estado depressivo, há um sentimento que parece ser comum e certo: solidariedade.
São vários os estudos – e os relatórios anuais de contas das associações de caridade também o provam – que afirmam que é durante a quadra natalícia que, à parte de todo o enquadramento social ou político, o número de doações, quer seja em dinheiro ou em bens materiais, sobe.
Já sabemos que em momentos de fragilidade do outro, de modo geral, o ser humano mobiliza-se para ajudar, como podemos recordar carrinhas que partiram de toda a Europa para a Ucrânia quando a invasão aconteceu ou o aumento de doações a determinadas causas quando uma notícia dá conta de uma catástrofe do outro lado do Mundo. Ainda assim, o Natal, independente de tragédias ou necessidade comprovada do outro, leva-nos a querer dar.
Gastar mais com os outros
A psicóloga Laura Nedel Duarte sublinha um facto já comprovado por diversos estudos: “No Natal, gastamos muito mais com os outros do que connosco”. Para a profissional do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, este movimento de generosidade está, em primeiro lugar, conectado com as sensações positivas associadas ao ato de dar. Ou seja, ainda que seja comum ouvir-se que “se dá sem esperar nada em troca”, na verdade, o nosso corpo dá-nos algo em troca – diminuiu o stress e ansiedade, são menores as chances de desenvolver sintomatologia depressiva, entre outros.
Isto acontece porque, avança Marta Martins Leite, psicóloga, “praticar um ato de caridade ativa regiões do nosso cérebro que estão envolvidas no processamento de recompensas. Mesmo que seja um estado emocional de curta duração, como é doar ou dar um presente, automaticamente estima-se que esteja associado à melhoria da saúde física e mental”. A ideia de que nos sentimos melhor a praticar um ato “bom” não é meramente abstrato, mas antes uma reação fisiológica do nosso corpo.
No entanto, a profissional das Clínicas Leite alerta para “o outro lado da moeda”: “As pessoas muitas vezes gostam de dar para se saber que praticaram generosidade, quando supostamente deveria ser uma coisa feita por nós para nos sentirmos bem na nossa intimidade, independentemente de os outros saberem que o fizemos”. Ainda que o ato de dar seja positivo para a saúde mental e física, é importante ter em atenção a necessidade por vezes sentida nesta época de Natal: comparar ofertas. Pois esta necessidade de afirmação pode acabar por produzir o efeito contrário ao referido.
Laura Nedel Duarte reforça a mesma ideia de ser necessário o caráter genuíno na generosidade. “Se antes o comportamento do ser humano assentava na teoria da sobrevivência do mais forte, agora temos uma mudança, em que percebemos que é quem pratica atos considerados moralmente ‘bons’, como voluntariado ou doações, que tem uma base de sobrevivência maior.” Vivem mais tempo e com maior qualidade. No entanto, destaca, estes benefícios só acontecem quando esses atos são praticados sem a ideia de obter um benefício próprio em troca.
O outro lado da festa
Já percebemos a associação entre o Natal e a solidariedade, bem como o seu lado “positivo” e o “negativo”, mas há outros sentimentos geralmente ligados a esta quadra. A felicidade parece quase que obrigatória nesta época. Será que há, também aqui, “o outro lado da moeda”? Para começar, o lado “bom”. Marta Martins Leite acredita que o Natal é fortemente conectado a uma ideia de positividade e alegria devido à sua ligação às recordações. “É uma época que nos remonta para as recordações de infância, que, por norma, são felizes.” A ideia de ter a família reunida num ambiente sereno, tranquilo e isento de problemas, inconscientemente, faz-nos ter memórias, na sua maioria, positivas.
E é exatamente essa estimulação da memória que nos leva, por exemplo, a ligar ou marcar presença junto de pessoas com quem não convivemos de forma regular. “Além de nos sentirmos mais afetuosos, por estarmos felizes com estas memórias, esta é também uma época em que a correria do dia a dia, regra geral, diminuiu, dando espaço para lembrar, pensar e refletir sobre pessoas e sentimentos que, no quotidiano, não têm espaço na nossa cabeça”, realça a psicóloga Marta Martins Leite. No entanto, tal como a generosidade, também a ideia de recordação pode ser um lado “negativo”.
Laura Nedel Duarte lembra que, por vezes, podemos ter a tentação de acusar o outro de oportunismo ou falsidade, por se lembrar de nós apenas neste momento do ano. “Devemos procurar ter uma perspetiva positiva e perceber que o outro tirou parte do seu tempo para nós, podendo, claro, partilhar o que nos deixa inquietos ou inseguros de forma positiva, mas numa perspetiva de aproveitar a reunião rara que acontece nesta época do ano para, posteriormente, voltar a ter uma ligação mais próxima.”
A psicóloga do Hospital da Cruz Vermelha refere ainda a pressão causada por essa tal ideia de reunião e união felizes. “Nem sempre é assim.” Nem todas as famílias têm relações pacíficas e nem todas as antigas relações têm obrigatoriamente de ser reatadas. “Devemos refletir durante o Natal sobre aquilo e aqueles que realmente nos trazem sentimentos positivos e investir neles, deixando de lado as obrigações sociais que podem causar ansiedade, sentimentos de desconforto ou estados depressivos”, diz Laura Nedel Duarte.
Tempo para pensar
É também aqui que a psicóloga Marta Martins Leite salienta a existência “do outro lado”. “Esta é uma altura de muita reflexão e isso pode levar-nos para pensamentos focados em coisas boas, mas também em coisas menos boas.” E se a psicologia nos diz que, acontecendo algo consideravelmente positivo na nossa vida, é provável que outros aspetos positivos se destaquem no nosso imaginário, também o contrário pode acontecer – podendo as festividades ser um aglomerado de memórias negativas que nos levam a estar atentos apenas ao que de pior nos acontece.
Segundo a profissional, um sentimento comummente partilhado em consultório durante a quadra natalícia é a saudade, quer seja de momentos que já não acontecem ou de familiares e amigos que já morreram. “O Natal remete-nos muito para a infância e para o festejar, principalmente das crianças, e o que acontece é que a esmagadora maioria das pessoas com quem nós festejávamos, à medida que vamos crescendo, já não estão entre nós ou festejam agora com as suas próprias famílias.”
Em suma, a solidão é também um sentimento comum desta quadra, especialmente porque, aponta a profissional, “as famílias já não são tão numerosas como eram antigamente e tem havido uma mudança, principalmente após o isolamento devido à pandemia, quanto à ideia de grandes aglomerações”. Estas mudanças e recordações provocam “angústia e sensações de tristeza e mal-estar”.
Atento ao outro
Marta Martins Leite considera ser necessário estar cada vez mais atento ao outro e questioná-lo sobre o seu bem-estar. “Nestas tradições ainda somos um país muito conservador, mas é fundamental começarmos a ter abertura para aceitarmos viver este momento de festa com elementos externos à família e que estejam excluídos destes sentimentos positivos.” Convidar um amigo ou vizinho que não tem com quem festejar o Natal pode ter um impacto importantíssimo, não só para a pessoa que se sente só, mas também para os restantes (recorde-se as sensações positivas associadas aos atos bondosos referidas no início do texto).
Voltando à ideia de expectativa e do sentimento de “obrigação” também associado a esta época, Laura Nedel Duarte refere ainda os casos em que não existe uma “ligação profunda com alguns ou todos os familiares”, ou que há mesmo um desrespeito e falta de aceitação destes para com a pessoa.
“Sentir que somos obrigados a conviver com uma ou várias pessoas com quem não nos identificamos ou que até nos deixam desconfortáveis com a nossa identidade não trará os benefícios relacionados com o Natal”, além de poderem espoletar ansiedade, quer na véspera quer durante o próprio convívio. Assim, é importante trabalhar na definição dos nossos limites e, quando não é possível evitar este confronto, procurar delimitar as conversas e interações que podem ser causadoras de mal-estar.
Busca pela perfeição
A juntar à equação “os sentimentos que o Natal nos traz”, há ainda outro parâmetro a ter em conta: a expectativa. Principalmente as expectativas irreais. “O cérebro associa o Natal a várias viagens cognitivas, quer seja às nossas memórias ou às ideias impostas pelas publicidades, por exemplo, e, com isto, acabamos por criar expectativas e comparações, com o passado ou com os outros, que nos levam a querer procurar ‘o Natal perfeito’.” Laura Nedel Duarte avisa que esta comum “busca pela perfeição” durante a quadra natalícia é uma das principais razões para que este seja também um momento do ano muito associado à ansiedade e ao stress.
Da preparação da ceia à escolha dos presentes, a felicidade, plasmada tanto nos nossos próprios conceitos do momento como no marketing das empresas – que aproveitam para fazer com que estas expectativas se transformem em maior consumo -, é, em grande parte das vezes, inalcançável. “Devemos parar para refletir, antes de fazer qualquer compra ou tomar decisão, se aquele ato nos irá genuinamente sentir bem ou se apenas o procuramos fazer por imposição social.”
À conta, Marta Martins Leite junta ainda os momentos de maior fragilidade económica vividos atualmente. “De forma subconsciente acabamos por ter a pressão de oferecer um presente ou de ter aquele prato mais caro na mesa e, se alguém não está bem a nível financeiro, com esta pressão social associada à já existente pressão económica, é impossível que a pessoa se sinta serena, tranquila, feliz e que, de alguma forma, encare este momento de uma forma agradável.”