Rapazes de Lisboa
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Vivem em Alfragide, numa casa que os pais herdaram dos avós, e que agora nenhum deles poderia pagar. Vivem em Alcochete, num apartamento espaçoso e desolado, para onde foram atirados pela transformação da cidade. Chamam-se João, Francisco, João Francisco. Fixam os monitores de um tal modo que os seus olhos parecem ver através deles. Cofiam as barbas ralas. Produzem.
Observo-os da janela do hotel onde a fundação nos instalou. São meia dúzia por sala, nalguns casos menos, e há uns quinze minutos que nenhum deles fala com um colega. Os corredores da empresa, que se espalham pelos vidros em volta, estão em silêncio. De vez em quando cruzam-se dois homens apenas um pouco mais velhos, vindos de portas diferentes, e dirigem-se juntos ao elevador do átrio. Quando vão a entrar, um deles leva a mão à testa, lembrando-se do cartão do ponto.
Falam de clientes, de produtos, de estratégias, estes garotos. Falam de packaging. Falam de quartéis-generais e “do Olaf”, que a maior parte deles só conhece do Skype. Não falam de dificuldades. Mais depressa falariam do Benfica, como naquela convenção de vendas em Fevereiro. Uma pessoa descontrai-se sempre um bocado numa convenção, embora desde a pandemia que nada seja a mesma coisa. Dificuldades, não. Não as têm, sequer: têm desafios. É com desafios que se faz das crises oportunidades.
Criam filhos, alguns destes rapazes, mas a maior parte não. Muitos hão-de ficar sentados nesta mesma cadeira até depois das dez. Pedirão um Uber Eats pelo caminho, comerão no sofá, a fazer scroll no telemóvel – os mapas de vendas, sempre os mapas de vendas -, e adormecerão com a Netflix ligada. De qualquer maneira, no sábado poderão combinar alguma coisa com alguém. Mac e linhas de coca, se não houver outra ideia – talvez em casa das Ineses, caso esteja por cá a malta de Aveiro.
A malta de Aveiro perde a cabeça por séries. E ainda há dias estreou uma que se passa nos Açores – não se fala noutra coisa.
Gostaria de poder ouvi-los daqui, estes rapazes. Têm uma linguagem divertida, cheia de metáforas americanas – quando acho que começo a entendê-la, já lhe acrescentaram novos elementos. A economia também é assim. E, além disso, os stakeholders, agora, não deixam passar nada. Antes da pandemia, tudo bem, respirava-se de outra maneira. Misturava-se tudo, stakeholders, managers, associates: portugueses e alemães – até o Olaf, aqui há uns anos, ao que disse a dona Guida da Contabilidade. Agora é cada um por si.
Enfim, talvez o meu filho queira trabalhar nesta empresa, um dia. Nesta ou noutra igual. Talvez faça planos para comprar um fato destes – dois, um antracite e um azul-escuro -, na intenção de lhe juntar um monte de camisas brancas, todas iguais, e um razoável número de gravatas, distintas apenas na cor. Talvez sonhe com um desses BMW com que as maiores empresas brindam os bons colaboradores (chamam-lhes colaboradores).
Eu teria acabado alcoólico. Mas isso só demonstra como estes rapazes têm razão para olharem para mim como o olhariam, se pudessem ver-me através destes vidros que nos separam. Portanto, não me preocupa se saberei o que responder ao Artur caso ele queira ter esta vida. Preocupa-me que possa escolher, que o faça livremente e que continue a ter nas mãos a possibilidade de ser feliz.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)