Joel Neto

Quinze dias


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

– Acho que já sei o que tens – disse o Tom pelo telefone. – Tenossinovite de Quervain. Parabéns: podes-te gabar de ser um pai envolvido.

E riu-se.

Eu também me ri, porque tudo isto dito no português adorável do Tom, um fisioterapeuta holandês e grandalhão que se instalou na ilha há não sei quantos anos e que conversa com o mesmo à vontade sobre o iluminismo europeu, a acupunctura chinesa e a tourada à corda terceirense, tem ainda mais graça. O problema é que me dói. Dói cada dia mais, porque um homem da minha idade já tem alguma vergonha de usar uma tala em público – e ainda por cima as Sanjoaninas ocorreram precisamente quando a inflamação estava mais encarniçada.

De qualquer maneira:

– Não vale a pena andares com anti-inflamatórios e mezinhas, Joel. Fisioterapia e imobilização, é o que precisas – insistiu o Tom, quando enfim fui ao ginásio mostrar-lhe o pulso. – E, sim, é mesmo a tenossinovite. Uma lesão muito comum entre mulheres que foram mães há pouco tempo.

Voltámos a rir-nos, na ausência de melhor ideia, embora entretanto eu já fosse na segunda tala e também não gostasse de me ver com ela. O orgulho é uma coisa terrível. Mas, enquanto voltava para casa, repetia para mim mesmo:

“Bom, talvez ainda não sejas um caso totalmente perdido. Ao menos o garoto precisa de ti.”

O que há-de ter feito São Tomás de Aquino revolver-se no túmulo, de cruz e escapulário, a gritar o seu superlativo hebraico.

A verdade é que precisa cada vez menos de mim, o Artur. De nós. Uns dias antes do São João, quando o Nuno chegou para mais uma daquelas inestimáveis quinzenas de amigo, psicólogo, consultor editorial, cozinheiro, enfermeiro, padre e – agora também – baby sitter, ele era sobretudo um bebé de colo, que precisava de ser embalado longamente antes de adormecer, pedia leite a noite inteira, chorava mesmo junto aos nossos ouvidos e depois acordava a rir. Hoje, passadas duas semanas, dorme sozinho no seu quarto, consegue adormecer directamente no berço, não mama uma só vez durante a noite, tem dois dentes a eclodir e, se não cultivasse tão especial predilecção por fios eléctricos, garrafões de vidro, candeeiros de pé alto, jarras de penachos, bibelôs pesados, molduras diversas, tigelas de comida para cão, tinas de água, armários de detergentes, saxofones, clarinetes, livros mais ou menos raros, tapetes sujos, atacadores, máquinas de escrever recém-oleadas, portas para o exterior, portas para o interior, armadilhas de baratas, pulverizadores aromáticos, caixotes do lixo, ferramentas de lareira, achas já com algum bolor, aspiradores sem fio, aspiradores com fio, mini-aspiradores, desumidificadores, aquecedores, redes mosquiteiras e, em geral, todo o tipo de calçado, sobretudo do lado da sola, e melhor ainda quando a Colette se descuidou fora do sítio e aconteceu o pior – enfim, se não fossem tão especiais predilecções, gatinhava o dia inteiro.

– Rastejava – corrigiria alguém mais independente.

E isso ainda é a única coisa que me anima, porque o meu filho está a crescer tão depressa, e a ganhar tanta autonomia, que qualquer dia gatinha mesmo, e eu já estou bom do pulso, e nem as armadilhas das baratas são um perigo para ele, e nós vamos ter tantas saudades de ele precisar assim de nós que não veremos maneira de a vida voltar a ter esta graça.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)