Valter Hugo Mãe

Os olhos de Laura Soutinho


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Algumas pessoas trazem vestígios de civilizações mitológicas, descendentes de alienígenas ou povos dos mares, com os corpos negociados entre aves e peixes ou nobrezas exuberantes do Egipto antigo ou da Pérsia. Vi um documentário acerca do sangue e fiquei surpreso de haver cientistas que colocam a hipótese de o tipo de sangue mais raro, o O negativo, acontecer a quem descende da Atlântida, essa terra em lugar nenhum que seria sofisticada e inteligente há centenas de milhares de anos.

Algumas pessoas, por uma natureza qualquer que não nos assiste a todos, ou têm maravilhosos cabelos iguais ao ouro ou maravilhosos cabelos negros como carvão, há quem tenha lábios iguais a morangos maduros ou as pernas de mármore perfeito. E há pessoas cujos olhos são aquários, uns charcos de água onde as pupilas flutuam como a navegar.

Há a Laura Soutinho e os olhos de Laura Soutinho. Não sei se ela descende dos de Atlântida, se é ainda dos persas ou dos egípcios, se ela arranjou maneira de ter genes exclusivos guardados para quem manda nas nações ou manda nas histórias mais bonitas dos livros, a verdade é que a vemos sempre encantados com sua beleza, o gesto elegantíssimo de quem se move uns centímetros acima do chão. Pode ser que seja ainda um compromisso único entre gente e pássaro, porque nunca vi ninguém a usar azuis e verdes assim, a saber vestir muito acima do comezinho confortável mas bastante antes do demasiado, na pura mestria da roupa.

A Laura Soutinho vai às exposições e parece até que alguém entrou de carro, com os faróis acesos em cima de um sorriso simpático. Os quadros iluminam-se ao seu olhar. Clarão depois de clarão enquanto passa. E novos e velhos, homens e mulheres, burburinham como ela é bonita, foi sempre bonita, continua a ser, que mulher tão incrível é a de Alcino Soutinho, e como ele também faz falta à cidade, ao país. Fazem falta as grandes pessoas todas. Que o tempo parece descontar a maravilha e oferecer o vazio. Não é verdade. O tempo abre sempre caminho para mais maravilha. Mas é da natureza humana lembrar e lamentar o que se perde. É um lamento que também celebra.

Já me parecia estranho que não se escrevesse acerca dessa impressão que causam os olhos de Laura Soutinho. Podiam valer um episódio dos programas do Joel Cleto, poderiam valer os textos do Germano Silva ou do Helder Pacheco. Talvez a Paula Moura Pinheiro possa vir ao Porto para uma “visita guiada” a partir de um património tão peculiar quanto é o olhar de alguém. Eu, por meu lado, já não podia ficar calado. Continuo a ser o moço deslumbrado que fui. Não calo acerca do fascínio. Não consigo. Nem diante de Florença nem a ouvir Vivaldi, nem a abraçar a minha mãe nem a comer pão quente e queijo da serra. Sinto que a maravilha tem de ser falada. Se vier da Atlântida, dos egípcios antigos ou dos persas, mais ainda. Maravilhas que se guardam quase impossivelmente, não há como esconder, não há como as parar de admirar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)