Joel Neto

O trabalho delas


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Uma pessoa pensa sempre que faz mais do que aquilo que faz. Um pai, isto é – um homem pensa sempre que faz mais do que faz. Quase sempre.

Por exemplo, ontem. A Marta tinha um relatório para escrever.

– Achas que consegues ficar com ele o resto da manhã? Excepcionalmente?

– Claro que sim – apressei-me. – Nem devias ter de pedi-lo!

Mas o facto é que o tom fazia sentido. Não tanto pelo meu grau de disponibilidade, espero, mas por via da relação obsessiva que cultivo com a ideia de organização. Súbitas alterações à rotina tiram-me o tapete, o ritmo, o próprio oxigénio.

– Só até por volta do meio-dia, amor.

– Não te preocupes – suspirei, fanfarrão. – Aproveito e antecipo o passeio dos cães. Vamos os quatro ao Monte Brasil e fazemos o Circuito de Manutenção para trás e para a frente, protegidos do sol. À uma estou a trabalhar.

E no fundo aquilo ainda seria o mais difícil: andar ali para trás e para a frente, repetitivamente.

O tormento começou logo à primeira escala. Os cremes e as roupas da manhã correram benzinho, mas a fralda anda cada vez mais difícil, porque agora o Artur deu em retorcer-se como um rabo acabado de cortar a uma lagartixa, interessado em tudo menos em facilitar a vida a quem quer que seja. Entretanto, a sesta da manhã também não saía, apesar de todos os meus esforços, e, quando enfim o sono chegou, parecia que nunca mais se ia embora, malgrado o hábito há tanto estabelecido, espontânea e (até aqui) irredutivelmente, dos 35 minutos medidos ao segundo.

Respirei fundo, sem saber se devia alterar logo o plano, mas arrisquei seguir para o almoço, a ver se não fazia pior. Fiz pior: houve sopa pelo chão, carne moída vaporizada pelos armários (e massa colada ao abajur, e restos de legumes empastelados contra a janela, e pedacinhos de gema de ovo misteriosamente enfiados nas tomadas eléctricas) -, tudo num tal rebuliço que, quando acabei de limpar a cadeira, as mesas e a bem dizer a cozinha toda, olhei para o garoto e ele próprio estava tão imundo que, já que tinha de lhe trocar a fralda de novo, lhe dei um banho.

Era quase uma da tarde quando chegámos ao Monte Brasil, pelo que já passava das duas e meia no momento em que voltámos para casa, exaustos e cheios de fome. Não fazia xixi há tanto tempo que me doía a bexiga. E, ao passar em frente ao espelho da casa-de-banho, reparei que não só não me tinha penteado antes de sair, mas levara os calções do quintal, tão sujos e rasgados que ainda foi um milagre os boxers não serem dos velhos.

A moral deste conto, vou resumi-lo e pronto (cada um faz o que melhor pensar, etc.), é que nós não fazemos quase nada, mesmo quando achamos que fazemos muito. Eu passo sozinho com o meu filho umas quatro, às vezes cinco, até seis horas por dia – fora as que passamos a três. Visto e dispo-o, dou-lhe banhos, besunto-o de cremes, troco-lhe fraldas, adormeço-o, passeio-o, sento-me a brincar com ele, e a cantar, e a ler. Não faço nada. A Marta continua a fazer as coisas mais difíceis, a maior parte delas em silêncio. Tenho a certeza de que é igual não apenas na maioria, mas em todas as outras famílias, todos os dias – e, mesmo assim, basta as nossas mulheres soprarem num momento de exasperação para nós suspirarmos:

– Tu, também, estás sempre mal disposta, fogo!

Temos muita sorte. Eu tenho.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)