A cultura da aceleração, numa vida carregada de ritmo, nem sempre dá margem para parar, ouvir e refletir antes de falar - ou para decidir de forma construtiva não falar sequer. Mas, em muitas situações, ganhamos em ficar calados. Os benefícios, os riscos de sermos mal interpretados e as estratégias para controlarmos o impulso de responder.
Certamente já deu por si a pensar que numa certa discussão talvez tivesse sido melhor ter ficado calado. Não por concordar com a outra pessoa, mas porque o impulso de responder num ápice, sem pensar, não levou a lado nenhum. Ou talvez já tenha tentado adotar o silêncio com um familiar, um amigo, um chefe no trabalho, para mostrar uma posição. A verdade é que a cultura do silêncio não está muito presente nas sociedades do sul da Europa. “Vivemos constantemente acelerados, com necessidade de ter coisas a acontecer, de ter ruído, de antecipar, de ocupar e ocupar, não há tempo de reflexão, há muita pressa.” Emília Araújo, investigadora e professora de Sociologia na Universidade do Minho, diz que hoje parece até estranho pensarmos sobre o que está a acontecer antes de reagirmos, porque isso exige tempo. “Tem tudo a ver com o ritmo, a nossa vida tem muito ritmo e, por vezes, estar em silêncio num determinado momento não significa que não haja ação, que ele não tenha efeitos.”
Para começar, é importante distinguir dois conceitos: ficar calado ou ficar em silêncio. “Ficar calado reflete a intenção de não responder através da palavra, uma recusa. Ficar em silêncio não significa não querer dar uma resposta, pode ser expressão de uma reflexão, de controlo, até apoio. O primeiro pode traduzir indiferença, desprezo, agressividade. O segundo pode expressar contenção, atenção ou compreensão”, esclarece Piedade Vieitas, psicóloga clínica. Neste contexto, a linguagem corporal é tudo. Por exemplo, uma pessoa em silêncio que está atenta ao outro não está a mexer no telemóvel, a olhar para o vazio, a distrair-se com um pequeno ruído.
E, em muitas situações, ficar em silêncio pode ser mais benéfico do que pensamos. É um mecanismo de linguagem não verbal que também carrega uma mensagem, seja de concordância, respeito, empatia ou tudo e o seu contrário. Dependendo dos contextos, escolher ficar em silêncio pode mesmo ser construtivo nas nossas relações. “Pode evitar discussões inúteis em que o outro está reativo, não está a conseguir ouvir e está a recusar entender o que temos para dizer”, exemplifica a psicóloga. O que não deixa de ser uma estratégia de comunicação, até porque pode tornar-se mais dilacerante do que um punhal de palavras projetadas num impulso de raiva. Nestes casos, ficar em silêncio pode ter efeito por si só ou pode permitir adiar a conversa para mais tarde, noutro tom. Mas há mais vantagens, dá-nos a capacidade de ouvir verdadeiramente o outro. “Pode ser uma expressão de escuta ativa. Além de nos permitir escutar, possibilita-nos observar a pessoa e conhecê-la melhor, identificar se o discurso é congruente com o comportamento observável. Também pode transmitir acalmia e ser uma oportunidade para o outro se expressar de forma mais livre. Facilita até a que a outra pessoa se ouça a ela própria.”
O problema é que as sociedades modernas assentam muito no barulho, na expressividade. Basta vermos que uma pessoa calada desperta sempre questões como ‘o que se passa?’ ou ‘não dizes nada?’. Cathia Chumbo, também psicóloga, resume a questão numa pergunta prática. “Quantas vezes um adulto se vê obrigado a responder logo pela pressão social? Só porque a resposta ‘não sei’ ou um silêncio de alguns segundos podem ser mal interpretados? É urgente revertermos paradigmas e diminuirmos os impulsos sociais, as roldanas a que nos sujeitamos de pergunta-resposta obrigatória.”
O risco da má interpretação
O facto de podermos ser mal interpretados é um ponto importante. Não nos manifestarmos no imediato, darmos tempo para a resposta ou ficarmos simplesmente em silêncio não poderá também passar uma ideia de subordinação, de falta de confiança, de que aceitamos tudo o que o outro diz sem reação? “Depende sempre do contexto. Há situações em que podemos encontrar esse julgamento. É curioso, socialmente, tanto julgamos a impulsividade como criticamos quem não se manifesta imediatamente. Aqui o problema coloca-se sobretudo em relações de poder. Porém, há um outro fenómeno importante a ter em conta. Durante as cenas de interação, as pessoas podem não manifestar-se verbalmente, mas podem manifestar-se de outra forma”, comenta a socióloga Emília Araújo, que estuda as questões do tempo e da sociedade. Usamos até a expressão quotidiana “sem comentários”, o que mostra que nem sempre é preciso falar muito para que a ideia passe – nos silêncios não é diferente.
Piedade Vieitas tende a concordar. Podemos sempre ser mal interpretados, mas “o comportamento não verbal é uma ferramenta para diminuir esse risco”. O silêncio por si só não significa falta de assertividade ou passividade (e a maneira de estar, o gesticular também é uma forma de nos manifestarmos). “Pode refletir maturidade e inteligência emocional. Ajuda a organizar o pensamento, a controlar e adequar as emoções à situação e a ajustar uma resposta verbal ou não verbal, uma atitude em relação ao outro. Ao tomar-se uma atitude não estamos a permitir que abusem de nós.”
Neste campo, há que alargar o leque para as muitas outras interpretações a que o silêncio está sujeito. “Se por um lado, o silêncio pode ser benéfico; por outro, nem sempre é reconhecido como tal”, avisa Cathia Chumbo. A psicóloga traz para cima da mesa a questão da ansiedade. Quando do outro lado está uma pessoa ansiosa, “que tem a necessidade de validação constante dos seus sentimentos, o silêncio poderá ser interpretado à luz da rejeição, da falta de interesse, da desistência, o que nem sempre corresponde à realidade”. Há que medir bem as situações, “os silêncios podem ser ensurdecedores, se utilizados de forma desadequada”, já que permitem interpretações demasiado vastas, à luz do contexto de cada um, da bagagem de cada um. “Assim, há silêncios que deverão ser evitados, a ausência de respostas numa discussão poderá simplesmente ser substituída por ‘não tenho uma resposta adequada para te dar’”, aconselha Cathia Chumbo.
Estratégias para pôr em prática
Foquemo-nos, pois, no silêncio construtivo, usado nos momentos certos como uma poderosa ferramenta de comunicação nas nossas relações. À primeira vista pode parecer, mas não é tarefa fácil pôr isto em prática. Há uma técnica, comenta a psicóloga, utilizada por grandes líderes chamada “regra do silêncio desconfortável ou regra do silêncio incómodo”. Em que, geralmente, as pessoas fazem uma pausa de dez a vinte segundos para refletir e responder exatamente aquilo que pretendem naquele momento. “Esta pausa pode ser utilizada também para gerirem e controlarem um lado emocional e impulsivo, através de uma auto-regulação emocional. Neste compasso de espera, evitamos o efeito ação-reação, que muitas vezes nos leva a arrependimentos posteriores.”
Ainda assim, a tendência, sabemos bem, é reagir no imediato. Para controlar o impulso de falar, refere Piedade Vieitas, é essencial também controlar a ansiedade, “para conseguir esperar, aceitar que não temos de responder a tudo, que isso não é um sinal de fraqueza, de vulnerabilidade ou mesmo de desempenho”. Pode ajudar “respirar fundo”, devolver a pergunta ou “tentar esclarecer o que o outro nos está a transmitir, minimizando o risco de dedução errada”. Outra estratégia poderá ser responder noutro momento, ou seja, dizer “preciso de pensar sobre isto e logo que possa respondo-te”. Sendo certo que “precisamos de estar mais focados em promover o ‘slow cooking’ e não o ‘fast food’ na comunicação”.
Emília Araújo reconhece que é um desafio adotar mais silêncios, “temos uma cultura de barulho, de acontecimento, de atividade permanente, o que nos perturba o sono, a convivência, tem efeitos na irritabilidade”. Mas há um aspeto a salientar neste assunto. “Mais do que termos técnicas para o fazermos, é importante termos capacidade de reflexão sobre o que nós próprios fazemos diariamente, para aprendermos a ter esses tempos de espera. E isso tem de ser trabalhado. Por exemplo, enquanto educadores, é importante dar este contexto aos jovens e crianças. Dar-lhes tempo para poderem reformular perguntas, pensar no que fizeram, refletir.” A arte, diz, ensina-nos muito sobre isso. “No caso do teatro, o ator tem de controlar muito bem os tempos de fala e reação para que a cena resulte. E muitas das cenas são silêncios, têm de ser, porque correspondem a reações.”
Há quem diga que o silêncio é a oração dos sábios, o que nos remete para uma ideia de um processo ativo, de uma decisão consciente. E pode de facto sê-lo. Veja-se que é usado em momentos solenes como principal meio de prestar homenagem. Não é por acaso. Tem um poder forte, é importante e precisa-se.