Eles morrem, mas nós resistimos a apagá-los do telefone

(Ilustação: Kudryavtsev/AdobeStock)

Já deu por si a recusar deliberadamente eliminar o número de um ente querido que faleceu? Perceba o significado da decisão, que pode até ter um impacto positivo. E saiba reconhecer os sinais de um luto patológico.

Helena Sousa, 70 anos, ainda hoje não sabe bem porque o faz, na verdade nunca pensou muito nisso até lhe colocarmos a questão, sabe que “não puxa”, que prefere mantê-los ali, mesmo que já não tenham qualquer utilidade prática. Falamos dos números de telefone dos entes queridos que nos morrem, no caso de Helena o pai, falecido em 2019, mais três amigas, ao longo dos anos. Em todos os casos tem resistido a eliminar os contactos. “Eles já não estão cá, não é, mas dá-me a sensação que se os apagar ficam ainda mais longe. Parece que se o fizer acabou, que os vou esquecer. Assim sinto-me mais perto.” Natacha Reis, 47 anos, sente algo muito semelhante, sobretudo em relação ao pai, com quem tinha uma relação “muito telefónica”. “Ligávamos um ao outro duas vezes por dia, trocávamos várias mensagens.” O que possivelmente também contribuiu para que nunca tenha querido limpar o nome dele da lista de contactos. “O ato de o apagar é simbólico e prefiro não o fazer. O telemóvel é algo em que mexemos constantemente e, ao procurarmos números de telefone e encontrarmos esses contactos [depois do pai, também perdeu amigos, e tem adotado sempre a mesma postura], de alguma forma é como se aquelas pessoas continuassem ali.” Se se identifica com estas linhas que acaba de ler, não se surpreenda. Esta recusa em apagar contactos telefónicos das pessoas próximas que vamos perdendo é bem mais comum do que possamos pensar num primeiro momento. Garante-o quem sabe de cor os meandros do luto.

“É comum querer perpetuar os laços com pessoas próximas que faleceram, seja guardando os contactos, as mensagens escritas para as reler, ou mesmo ouvindo mensagens de voz. É uma forma de as pessoas prolongarem a presença dos entes queridos nas suas vidas, e pode ser também a expressão de uma resistência à mudança, sendo que a morte é muitas vezes uma mudança repentina para a qual não estamos preparados”, reconhece Joana Soares, professora universitária e psicóloga, sendo uma das responsáveis pela consulta do luto do Centro Hospitalar de São João, no Porto. “É algo que me é muito familiar [em relação aos casos que acompanha], acontece mais do que aquilo que pensamos”, acrescenta Suzy Pinho Pereira, psicóloga clínica e da saúde formada em luto. “As razões que me têm dado oscilam sempre entre dois pontos. Tenho pacientes que não eliminam os números porque não conseguem – não é porque estão à espera que aquelas pessoas lhes liguem, mas é o receio de tornar real. Noutros casos dizem-me que não o querem fazer para não se esquecerem daquela pessoa.”

Também Catarina Dinis, psicóloga do hospital CUF Cascais que trabalha com frequência a questão do luto patológico, refere tratar-se de um comportamento comum. Advoga, ainda assim, que não é necessariamente “um passo importante na gestão do luto, mesmo quando se trata de um luto patológico”. E não acha que se trate de uma decisão com um impacto negativo. Pelo contrário. “A recusa em apagar o contacto telefónico tem duas vertentes. No plano mais prático, permite que se leiam as mensagens, que se mantenha o histórico e muitas vezes o acesso ao ente querido perdido, através do som da sua voz, caso existam áudios. Apagar o número, num segundo plano, é também apagar a pessoa, apagar qualquer rasto. Nos dias de hoje seria o equivalente a, no passado, rasgar as cartas e as fotografias que guardávamos. Assim sendo, não se torna negativa, em contexto de processo de luto, porque estamos a preservar o acervo emocional daqueles que amamos. Não podemos apagar aqueles que amamos.”

Quartos e armários intactos

Joana Soares tende a concordar. “Um dos pontos que trabalhamos no processo de luto é a manutenção dos laços, que é no fundo uma forma de perpetuar a relação [com o ente querido que faleceu], mas com foco no presente. Há quem precise de ir ao cemitério, há quem estabeleça pontos de culto dentro da casa, há quem veja fotos, nada disso é negativo. Aliás, essa manutenção dos laços é uma tarefa importante e sugerida na consulta, uma forma de sentirmos que aquela pessoa foi importante e vai deixar um legado.” Um princípio que se pode aplicar às mensagens de voz que obstinadamente nos recusamos a apagar do telefone, por exemplo. “A saudade fica e perpetua-se. E às vezes há uma vontade de voltar a lembrar a voz, até porque esta nem sempre fica na memória. Ficamos com a imagem da pessoa, as memórias dos gostos, dos gestos, mas a voz vai-se desvanecendo. Daí que ouvir as mensagens seja também uma forma de perpetuar o contacto com a pessoa perdida. O mesmo se aplica em relação a certos pertences da pessoa, por exemplo, que funcionam quase como amuletos com efeito calmante.” Mas, como faz questão de lembrar, o processo de luto é altamente complexo e idiossincrático, variando imensamente de caso para caso. “Nunca sabemos como aquela pessoa em concreto vai reagir.” Daí que as leituras generalistas e isoladas de um dado comportamento sejam de evitar. E sim, há de facto casos em que é necessário “intervir”.

Suzy recorda, a propósito, histórias de pacientes que não só recusaram apagar os contactos como, “ao fim de um, dois anos, caíram na tentação de ligar para o número”. “Claro que atenderam outras pessoas e isso foi um choque. [Ao fim de uns meses, um número telefónico que não esteja a ser utilizado pode ser atribuído a outra pessoa].” Há até casos mais preocupantes. Como os dos pais que perdem filhos e não voltam a mexer no quarto deles. “Tenho uma paciente que perdeu o filho há quase 16 anos e que manteve o quarto dele como estava, inclusive com a roupa que ele tinha deixado em cima da cama antes de sair. Sentia que se mudasse o quarto era quase como se o filho não tivesse existido.” Daí que por vezes seja necessário “desmistificar isto em consulta, mostrar que não é por eliminarem o contacto que se vão esquecer” da pessoa em causa. “O luto não serve para esquecermos as pessoas de quem gostamos, serve para nos lembrarmos delas sem que doa tanto”, salienta. Também Catarina Dinis reconhece que “é muito comum existirem lutos, com anos, em que os quartos, armários ou escritórios do falecido foram mantidos intactos”. E que nesses casos é necessário intervir “de forma assertiva, mas sempre respeitando a capacidade emocional de cada pessoa”.

Quando o luto se torna patológico

Lembremos, a propósito, que, não sendo linear e variando de pessoa para pessoa, o luto é geralmente descrito em cinco fases. A negação, um mecanismo de defesa temporário em que “é comum sentir choque, incredulidade e uma sensação de que a perda não pode ser verdadeira”. A raiva, em que nos questionamos porque aconteceu, podendo a raiva ser canalizada para quem está à nossa volta. A negociação, em que a pessoa “tenta negociar de alguma forma para reverter a perda”, através de promessas, por exemplo. A depressão, que se vai instalando à medida que as tentativas de negociação falham, e em que abundam “sentimentos de desespero, solidão, vazio”. E por fim a aceitação, em que, não tendo esquecido a perda, se tentam encontrar maneiras de viver com ela. Catarina Dinis ressalva, no entanto, que “nem todas as pessoas passam por todas essas fases” e que elas “não ocorrem necessariamente na ordem exata mencionada”. “Cada pessoa lida com o luto de maneira única, e não há um cronograma definido para a recuperação. É fundamental respeitar os próprios sentimentos e procurar apoio emocional, se necessário, durante o processo de luto.”

Mas afinal, como podemos saber que estamos perante um processo de luto patológico? Em teoria, os critérios de diagnóstico, nomeadamente os que estão inscritos na Classificação Internacional de Doenças (ICD-11), indicam que quando o luto se prolonga por mais de seis meses há elegibilidade para consulta da especialidade. Numa abordagem mais prática, Catarina Dinis responde assim: “O luto torna-se uma patologia quando corresponde a uma resposta intensa e duradoura à perda de alguém, que resulta em sofrimento extremo e disfuncionalidade na vida quotidiana. Diferencia-se do luto ‘normal’ pela sua intensidade, duração e impacto negativo na saúde mental e no funcionamento diário da pessoa enlutada.” Suzy serve-se de uma metáfora. “O que costumo explicar aos meus pacientes é que quando entramos num processo de luto temos um bolso cheio de pedras, que não nos permitem dar passos, estamos bloqueados. Quando estamos a trabalhar o processo de luto, vamos largando pedras. Quando o finalizamos, há uma pedra que fica sempre no bolso, uma pedra bicuda, sempre que lá pomos a mão recordamos a pessoa que partiu, mas sem sofrer. Se passarmos muito tempo com as pedras no bolso sem conseguir andar, isso é sinal de alarme e devemos pedir ajuda.” Na prática, os sinais que devem servir de alerta são o isolamento social, as dificuldades no funcionamento diário, pensamentos obsessivos sobre a pessoa falecida, dificuldade em aceitar a perda e nalguns casos sintomas físicos, que vão desde a insónia à perda de apetite, passando pela sensação de fadiga extrema ou mesmo as dores físicas.

E agora voltando aos números que não se apagam, às mensagens que se guardam, às gravações que se eternizam, tentemos perceber: o facto de alguém fazer questão, por exemplo, de ouvir diariamente as mensagens de voz de um ente querido que já partiu pode ser também sinal de um luto patológico? Joana Soares reage com prudência. “Eventualmente pode haver pessoas que nesta necessidade de perpetuação de um laço podem tornar o processo patológico. Mas esse exemplo por si só não é suficiente para falarmos num luto que deve ser alvo de intervenção. Só seria se, juntamente com esta necessidade de ouvir repetidamente as mensagens, houvesse uma incapacidade de retomar as atividades normais, de trabalhar, de estabelecer relações interpessoais, uma saudade extrema, mórbida até.” A propósito, se se reconhece nestas últimas linhas, não hesite em procurar ajuda especializada.