Valter Hugo Mãe

Idade


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Depois dos cinquenta temos perfeita noção de que à idade já não assiste qualquer universalidade. Em rigor, os que se portaram melhor seguem sem sobressalto pelo tempo e os que prevaricaram desqualificam-se com maior ou menor gravidade para o desafio de envelhecer. O tempo, afinal, tem bastante a cara do brio com que cada um tratou sua cabeça e seu corpo. Olho em redor e o que vejo são os resultados de uma resiliência maior ou menor, fazendo com que nos distanciemos uns dos outros pela bravura, ou falta dela, com que soubemos prevenir, abdicar, escolher melhor, muito melhor.

Tenho reparado que até as pessoas que eram novas nos anos da minha juventude já estão de cabelos a clarear. Quero dizer, as pessoas mais novas do que eu, a que me habituei de ver como miúdos que gravitavam em torno do nosso mundo de música ao vivo, os nossos cafés, as livrarias onde íamos comprar o novo do Al Berto. Esses miúdos começam a ter filhos licenciados, a fazer pós-graduações em Londres, a casar também, a engravidar. Vi uma fotografia da Luísa, que para mim era sempre uma menina com o sonho de ser jornalista, e ela está com vinte anos de carreira, o cabelo branco, e uma filha a enviar mensagens desde Itália, para onde foi integrar uma orquestra. A Luísa, não sei como, é para mim aquela menina e, ao mesmo tempo, uma mulher velha, até muito mais velha do que eu porque tem filhos grandes, já cisma com netos, passa o tempo a falar das saudades, usa uns vestidos que não são nada preparados para os concertos dos Bauhaus que nos definiam enquanto morcegos convictos e sem cura.

Subitamente, estamos apanhados numa realidade meio absurda que não corresponde em nada às nossas almas punks. Íamos ser todos esquisitos, com as casas pintadas de preto, só com coisas muito incríveis trazidas de viagens aos cimos das montanhas geladas, e andaríamos até em modo lento, como nos filmes do Lynch, todos a bater mal mas memoráveis. Inesquecíveis e sempre muito sensuais, com toda a gente a querer nossos corpos e nosso amor. Ao invés disso, tossimos fartinhos de covid e gripes e alergias e toda a porcaria de não-se-sabe-que-raio-é-isto que veio depois da pandemia. Ficamos todos sem imunidade para nada. Qualquer poeira nos pega um vírus. Já nem sei há quanto tempo acordo sem espirrar. O espirro é o novo canto de galo ao nascer do dia. Que paciência me falta para a vida de cinquentão.

Se isto agrava? Claro. Mas o certo é que amigos mais velhos são bastante mais joviais do que eu. Nem vou falar do Agostinho Santos, que tem uma folia para os dias que não entendo. Não lhe dá nenhuma lunaridade. Em cima dele é sempre Julho, e não lhe pára a imaginação nem a alegria. Os meus amigos com mais idade do que eu, muitos, dão-me um baile na genica. Penso agora que me boicotei com uma pacatez qualquer. Não sei se foi de pasmar muito para a paisagem, se foi de comer demasiado pão ou chocolate, certamente foi de ter deixado de ir à piscina. A minha idade não serve para mais ninguém. Disso me esclareci. Não serve para mais ninguém. Deixou completamente de ser uma medida com a qual se possam estabelecer comparações, tirar conclusões, propor estratégias de paridade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)