Joel Neto

Elogio do medo


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Uma coisa que espero ensinar ao meu filho é a dimensão instrumental do medo.

Às vezes ouço-os aí, todos fanfarrões:

– Eu não tenho medo de nada.

E não sei quantas ideias evidentemente mais estúpidas do que essa haverá.

Desde logo, o medo protege-nos da adversidade. Se não fosse o medo, nunca nos teríamos munido de estratagemas contra as inundações, os fogos ou os temporais, o que há muito teria levado ao desaparecimento desta espécie.

Mas, mais do que isso, o medo desafia-nos à sua superação. É a isso que chamamos coragem: à superação do medo. Sem medo nem haveria coragem.

Lacan escreveu sobre isso. Stephen Zweig e Hans Jonas escreveram sobre isso. “O sentimento mais estimulante é o medo”, escreveu Canetti. “É impensável o quão pouco seríamos se não tivéssemos sentido medo.”

E, para quem torça o nariz ao pensamento abstracto, então talvez possa socorrer-se de um homem de acção. “O homem de coragem não é o que não sente medo”, proclamava Mandela. “O homem de coragem é o que conquista o medo.”

Com certeza ninguém disputará que Mandela sabia do que falava ao falar do medo.

O medo não é adversário da coragem, não: é condição. Só se pode ser corajoso perante os obstáculos que os monstros erguem para se protegerem. O segredo está em como usá-los.

Felizmente, o medo exerce sobre nós suficiente curiosidade para que espreitemos por detrás da porta. O Homem pode ser o animal que mais sente medo, mas também é o único que se senta a ler, ver ou admirar livros como os de Lovecraft ou Stephen King, filmes como os de Hitchcock ou Kubrick, quadros como os de Munch ou Caravaggio.

E, de repente, o medo torna-se não apenas o maior, mas o melhor catalisador. A modernidade chegou a acreditar que o progresso científico eliminaria a morte, o enigma e o medo. Entretanto, percebeu que sem medo não há – digamos assim – engagement. Por isso, manipular o medo também é, às vezes, a melhor maneira de manipular o outro. Como a Igreja intuiu há dois mil anos.

Portanto, há que dominar o medo. De resto, o pior com que podemos confrontar-nos não é o medo: é a ansiedade. É o medo de ter medo. Por isso alguns psicólogos usaram, para combater a ansiedade, aquilo a que chamavam “dessensibilização sistemática”. Não havia medo que resistisse. Nem esperança. Nem amor.

Grande parte do que importa na vida é resultado do combate ao medo. Do medo de morrer, do medo da solidão, do medo de ser esquecido. A literatura também vem do medo. A própria procriação, com mais frequência do que menos, vem do medo.

O medo é o rosto do diabo, da fealdade e da morte. Mas, ao mesmo tempo, por que razão haveríamos de levantar-nos da cama de manhã se não fosse preciso brandir a vontade contra o diabo, a fealdade e a morte?

O medo é uma linguagem. Combater o medo é outra. “Minha mãe pariu gémeos”, disse Hobbes, o pai da filosofia do medo. “Eu e o medo.”

Viver é esse risco. Não há nada mais arriscado do que viver. Nem nada que valha a pena sem risco.

Eis o que eu gostaria de ensinar ao Artur: para que servem as coisas, os planos, os próprios afectos – para que serve o que, desaparecendo amanhã, deixa o Mundo igual?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)