Joel Neto

Desafio número um


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Eu sei que não sou só eu. Todos nós, quando ouvimos falar de uma summit – ou de uma talk, ou de uma convention, ou de qualquer outra espécie de conferência ou simpósio com nome em inglês -, nos perguntamos: qual será a grandiloquência, desta vez? Mesmo assim, surpreende-nos sempre. Por exemplo, na minha pequena e amada cidade de Angra do Heroísmo, há tantos séculos distante da centralidade global que outrora teve, foi anunciada há dias a primeira viagem tripulada a Marte.

Nada menos. “Açores vão servir de cenário para ‘missão a Marte’”, escreveram os jornais. “Ilha Terceira foi o local escolhido para a ‘primeira missão espacial análoga’ ao planeta.” E, se não fossem aquelas comas, ‘missão a Marte’, ‘primeira missão espacial’, talvez também eu tivesse saído à rua a cantar loas ao São João, ao Espírito Santo e ao Instituto de Inovação Tecnológica. Mas, daí, talvez não tivesse. Porque, no fundo, é sempre assim: anunciar não paga imposto, e cada linha no jornal da terra – até nos jornais nacionais, como foi o caso – justifica três hipérboles.

Falamos de uma simulação, evidentemente – ninguém vai de facto a Marte. E também será exagerado falar no “potencial que os Açores têm para colocar, não apenas a região, mas Portugal no mapa mundial das missões espaciais análogas”, ao longo das quais putativos astronautas “poderão treinar-se”. Marte tem tal abundância de pó de óxido de ferro que lhe chamamos Planeta Vermelho. Aliás: os seus desertos de basalto toleítico e sílica são tão secos e inapeláveis que o Matt Damon se viu aflito para aguentar até a nave regressar.

Já na Terceira, é tudo verde. E chove até no Verão. Ainda nas últimas semanas, com as marchas das Sanjoaninas ensaiadas, choveu tanto, mas tanto, que a certa altura uma pessoa tinha pesadelos em que lhe escorria água pelas paredes, e o colchão em que dormia também era de água, e a torradeira não funcionava porque estava cheia de água até à borda, e os cães passavam de repente no corredor, aflitos, levados pela torrente que circulava entre as divisões.

Naturalmente, não dá para simular um planeta desértico. Mas, pronto, pode-se ligar um computador. Para ligar um computador, não falta potencial: há luz (menos quando faz vento). E, no fim, nada disso importa: anunciar, neste novo mundo de conferencistas com microfones presos à orelha, é metade do prazer. Por acaso não sei como estão os unicórnios do Moedas. Mas do que valeria esse género de escrutínio se na pista das Lajes, naqueles dias da summit, chegou a haver “quatro aviões privados”, como me repetiu uma jovem empreendedora local, depois de ter ido lá mostrar o seu “conceito”?

Entretanto, sou percorrido por um calafrio: como é que eu ensino o sentido das proporções ao Artur, num tempo destes? Como o nutro da noção da medida certa, enquanto emissor, sem o coarctar na habilidade para desenvolver uma narrativa? E como lhe ensino, enquanto receptor, a capacidade de torcer o nariz, de dar um desconto, sem o fazer resvalar para o cinismo e o ressentimento, que tantos do meu tempo já consideravam sinónimos de inteligência?

Talvez seja esse o desafio número um: como lhe mostro que vale a pena sonhar com as estrelas, mesmo quando as estrelas foram capturadas pelos mitómanos? Assusta-me um pouco.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)