Joel Neto

Da beleza e seus intérpretes


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

No sábado fomos ver as ginastas. Faziam serpentear fitas no ar, amparavam bolas coloridas com as omoplatas, brandiam arcos que se poderia fazer rolar na estrada, com a ajuda de um pauzinho, e que de vez em quando trespassavam com o seu próprio corpo, num gesto súbito e elegante. Sempre que uma acabava o seu esquema, vinha sentar-se na bancada, o olhar dividido entre a colega que agora se exibia no praticável e o Artur sentado no meu colo. Uma delas abriu um sorriso expansivo: “Olha, o Artur!”. Outra encolheu-se num risinho tímido, sussurrando para uma colega: “É um bebé de verdade”.

Vai-se tornando a mascote delas, “o filho da Marta”, e assistir a isso, mesmo de longe, tem sido um dos privilégios deste tempo. O fascínio que um bebé exerce sobre uma menina é um dos retratos mais encantatórios desta espécie. A Marta tem uma fotografia em que o Artur está deitado num colchão azul, com o olhar arregalado da surpresa e do deleite, e há uma série de meninas à sua volta, mais velhas e mais novas, dispostas em círculo, simplesmente a olhar para ele. Também nisso são ginastas: na perfeição de círculo que desenham ao esparramar-se num colchão.

Da primeira vez que as fui ver competir, dei por mim a chorar. O altifalante anunciou um nome e uma menina saiu de entre os biombos, caminhando sobre as pontas dos pés, num movimento que tanto parecia o de uma bailarina como o de um pequeno soldado russo. Soou um apito, arrancou a música, houve um salto, uma corda atirada ao ar – e eu apercebi-me de que me corriam as lágrimas. Disse a mim mesmo: “É porque não tens filhos”. Mas agora tenho um filho e choro na mesma.

E podia ser por se tratar de meninas, como tantas vezes. Algumas das minhas melhores personagens são meninas, e em muitas delas há um tanto de menina e um tanto de rapazinho – um pouco como nestas convive a bailarina e o soldado russo, embora este soldado seja talvez como um Tadzio. Mas ainda esta manhã a Marta me disse, ao ver o Artur percorrer o meu rosto com as mãos pequeninas: “Esse pequeno gosta tanto do pai como uma menina costuma gostar”. Portanto, não me parece que a explicação esteja aí, e sim na narrativa daquele desporto diabólico e exultante.

A ginástica rítmica implica tanto trabalho, tanto esforço e tanta repetição e tanta dor, que o misto de beleza e alegria em que sempre redunda um exercício se torna comovente. Entretanto, há uma história em cada coreografia, tanto nos seus gestos mais lânguidos como nos seus mais enérgicos staccatos (nos seus pivôs, saltos, ondas, equilíbrios, riscos, sincronias, efeitos, passos de dança), e essa história é sempre a da esperança, do triunfo sobre as limitações humanas, as do corpo, as da mente, as do espírito – e um triunfo em que vale a pena acreditar até na mais incipiente idade, perante a mais avassaladora fragilidade.

Foi assim que passámos o nosso sábado, eu e o Artur: a ver as meninas que demandavam o impossível. No dia seguinte estávamos lá de novo. Então, chegava outra vez a hora, a Marta interrompia os seus afazeres de treinadora, eu procurava o bebé pelos colos entre os quais cirandava nas bancadas – e sentava-me com eles a um canto, a vê-lo mamar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)