Valter Hugo Mãe

Cristina Branco


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Há uma cena fugaz num filme de Almodóvar na qual Rosalía está entre mulheres lavando no rio e cantando. É tão breve quanto perfeita essa passagem. Aludindo, claro, a certo papel antigo da mulher, fá-lo numa conquista de paz que se torna comovente. O lugar do rio, a roupa limpa, o ofício que as mulheres assumiam tão entregues quanto encurraladas, tudo se canta por redenção, poesia e beleza na voz tão cristalina quanto dolente de Rosalía.

O que vejo nessa passagem de Almodóvar é o que ouço desde sempre na voz de Cristina Branco, uma expressão cristalina que levanta no fado a mais sincera antiguidade, a confissão das mulheres, sobreviventes a todo o custo, trazidas de seus trabalhos e lonjuras, magoadas de seus amores, inteirinhas por consumar, por libertar. É curioso como a fadista de timbre mais aberto, mais de menina eterna, uma voz começadora, aquela que pode parecer constante pássaro levantado, é afinal a que me convence de maior combate, como se permanente fosse a tempestade, tudo quanto atrapalha o gesto de voar. Porque a ouço como essa voz menina que se debate no temporal, atravessada na sua transparência pelo agreste do mundo.

O fado é hoje rico em vozes, grandes cantoras e cantores que souberam derrubar o preconceito e os fantasmas tutelares das figuras anteriores, e se estendem num sem-fim de personalidades, estilos mais ou menos tradicionais que permitem ver como se faz cada vez mais poliédrico, múltiplo, afinal, inesgotável. O lugar de Cristina Branco é, por sinal, sem pressas. Ocupa-o já longamente, maduramente, como quem sabe desde o início o que importa, e torna-se subitamente assombroso percorrer sua discografia e encontrar-lhe um estatuto verdadeiramente monumental. A alma portuguesa está lá toda. O retrato de uma intimidade portuguesa, sem claudicar, tem ali uma vasta panorâmica. E o sobressalto é vivo. Nada no jeito discreto e educado de Cristina Branco nos poupa ao sobressalto. Porque o primeiro som de sua voz já é o abalo ao qual sucumbimos de imediato. Gosto muito disso. De ser levado pelo mais pequeno anúncio de sua voz, como se me visse entre mulheres esperando por curar suas dores, como se me visse entre ventos e fugindo da chuva ao fundo, a regressar ao abrigo que, afinal, é também, para sempre, a voz da minha mãe.

O disco novo de Cristina Branco leva o título de “Mãe”. Está nas plataformas digitais desde há poucas semanas. É, mais uma vez, um diamante. Depois daquele belíssimo trabalho com João Paulo Esteves da Silva, Branco regressa ao fado tradicional e conserva o que é fundamental: a verdade. Não é possível ouvir sem partir. Partir como os vidros que caem ao chão. Partir como os que vão. Mas como os que voltam para casa. Ouço, e volto para casa.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)