Valter Hugo Mãe

Carolina Maria de Jesus


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Num inquérito recente, os brasileiros elegeram “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada” como o mais importante livro nacional do século XX. Superando tudo quanto Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado ou Clarisse Lispector escreveram, a obra de Carolina Maria de Jesus traduz um Brasil por consumar. Na verdade, traduz a humanidade por se consumar revelando, contra toda a hipocrisia, o horror sistémico em cima de grupos de pessoas preteridas.

O livro de Carolina Maria de Jesus é o mais comovente que conheço. Sua declaração frontal, a ansiedade por poder habitar e alimentar seus filhos, o desejo de poder escrever impune, leva-nos à intimidade revoltante de alguém que só não dá certo pela cor de sua pele. Isso é tão concreto que, quando o livro saiu no ano de 1960, virando um caso de atenção peculiar, vendendo muitíssimo e sendo até traduzido, Salazar proíbe sua edição em Portugal, covarde, temendo a descoberta de que os negros também são gente, sentado ainda sobre as colónias africanas como um lunático.

O Museu de Arte do Rio (MAR), no Rio de Janeiro, claro está, nasceu há uns poucos anos diante do cais onde atracavam os barcos do comércio negreiro. Ali, dirimiam entre mortas, pouco e muito vivas, e se destinavam as vidas dessas pessoas escravizadas. Parece-me perfeito para que o MAR se torne um bastião da reflexão acerca da negritude, inscrevendo, às vezes pela primeira vez, artistas e pensadores no circuito convencional, retirando do apagamento a que os poderes sempre brancos ou esbranquiçados os condenam.

Em colaboração com o Instituto Moreira Salles, e com curadoria do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto, assistidos por Phelipe Rezende, o MAR expõe “Carolina Maria de Jesus, Um Brasil para os Brasileiros”, que me foi impossível atravessar sem alagar os olhos e sem alguma vergonha. Não é que simplesmente a História do meu país se prenda com a mais abjecta indústria da humanidade. É que, mesmo depois de décadas sendo reeditado, comovendo gente pelo mundo, Portugal, que deixou a Língua ao Brasil, podendo por isso entender melhor do que ninguém a digníssima e altíssima maravilha que é o livro desta mulher, apenas o editou em 2021, por mãos da VS Editores, uma chancela pequena que tem levado às nossas livrarias muito do mais interessante que há para ler.

A indiferença de TODAS as grandes casas de edição em mais de sessenta anos é a vergonha que temos de sentir. Porque isso não é o passado, é o país de hoje, o país que coercivamente mudou o destino de Carolina Maria de Jesus, mas que parece demitir-se sequer da consciência de o ter feito. Julgo que Portugal precisa de preparar-se para o debate que aí vem. Os brancos brasileiros não conseguem mais calar os povos negros ou vermelhos. Os brancos portugueses vão ter de ouvir acerca do horror de seus antepassados, com o qual se mantêm coniventes em tantos sinais de covardia e racismo.

A exposição no MAR não é importante para Carolina Maria de Jesus. Ela é importante para nós. É escola. Há que ver para aprender. Que bom seria se Portugal houvesse de a trazer a Lisboa, onde as ideias para comprar e vender gente andaram nas cabecinhas desses moços que vemos nas estátuas por toda a parte.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)