Margarida Rebelo Pinto

Bichos de duas patas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

As mulheres que já foram alvo de violência doméstica e conseguiram libertar-se do agressor não gostam que lhes chamem vítimas, preferem ser referidas como sobreviventes. A decisão de uma juíza da Amadora em suspender um processo de violência doméstica e determinar que o agressor leve a vítima a jantar fora e a atividades culturais deixou-me chocada. Enquanto mulher, não posso deixar de me sentir perplexa com tal decisão. Trata-se de um agressor com antecedentes criminais que esbofeteou e pontapeou a vítima e tentou estrangulá-la. Não me parece coisa pouca. Pensar que se pode amaciar o caráter de uma pessoa violenta com concertos de Mozart é o mesmo que acreditar que é possível lavar os dentes a um crocodilo.

Vale a pena refletir onde é que começa a violência doméstica, porque muitas vezes aparece antes da violência física. Se um homem insulta, diminui e humilha a mulher, se a ignora, a negligencia, ou troça dela de forma sistemática e intencional, não precisa de lhe levantar a mão ou de empunhar uma faca diante dos olhos para que se sinta agredida. Por vezes, tanto homens como mulheres, são hábeis e exímios a exercer no outro um tipo de violência subtil, porém não menos eficaz, que passa pela crítica velada, mas constante, por atitudes de prepotência no dia a dia, por questões tão ridículas como ‘esse Brie que eu comprei é só para mim, nem te passe pela cabeça tocares-lhe’ ou ‘se não sabes passar-me as camisas como deve ser, não serves para nada’. Existem questões culturais tão enraizadas que o trabalho de as alterar representa um esforço ciclópico e uma ação coordenada por parte de governos, legisladores, aparelho judicial, sociedade civil e cidadãos. É em casa e na família que se interiorizam padrões de comportamento desde a mais tenra idade. Se estes padrões têm traços de violência de qualquer tipo, é apenas humano e natural que venham a repetir-se na geração seguinte. Pôr a pata em cima é uma prática comum, com tantas variantes e subtilezas, que é necessário ter um apurado instinto de sobrevivência e uma mão cheia de recursos internos e externos que permitam à potencial vítima reagir com prontidão e eficácia. Para quem nunca foi alvo de violência doméstica, é como falar dos sintomas de uma doença sem nunca a ter sentido debaixo da pele. Muitas vezes, a violência avança de forma sorrateira e manhosa, um comentário vexatório aqui, uma pequena humilhação em frente a terceiros, um gesto brusco ou uma reação exagerada a uma situação sem qualquer fundamento.

Outra estratégia de terror é incutir no outro a ideia que tudo aquilo está a acontecer porque foi ele que provocou. É o clássico ‘a culpa é tua’, projetando para a vítima o ónus da questão. Neste caso, o carrasco assume o papel de vítima, acusando a vítima de ser a fonte de todas a sua desgraça e infelicidade. Lágrimas de crocodilo, vertidas por bichos de duas patas.

Também assistimos no fim de semana passado a manifestações de rua em favor dos direitos dos animais. Foi com tristeza que verifiquei que estiveram mais pessoas nas ruas em defesa dos amigos de quatro patas do que em protestos pelo flagelo da violência doméstica, que mata mães, filhas, irmãs e amigas, destruindo famílias de forma brutal e irreversível. Os animais não têm quem os defenda, mas mulheres agredidas também não têm, ou não seriam agredidas.