Aquele medo de fazer chichi fora de casa

Uma coisa é certa: atrasar o chichi traz complicações (Foto: Freepik)

A bexiga fica tímida, o esfíncter não relaxa, e nada acontece quando há gente do outro lado da porta da casa de banho. Um problema fisiológico? Uma questão emocional? O que acontece, afinal?

Levanta-se da secretária, vai à casa de banho do trabalho, quatro compartimentos à disposição com paredes que não chegam totalmente ao teto, uma pessoa está a lavar as mãos no lavatório, duas entram logo atrás, só há uma sanita disponível naquele momento, entra, fecha a porta, e a vontade de fazer chichi desaparece de repente e completamente. Está gente perto, a dois passos. Vai dormir a casa de amigos, são três da manhã, levanta-se para ir à casa de banho, silêncio total, o prédio tem vários andares, está no terceiro piso, senta-se na sanita, o chichi não sai. A bexiga não obedece à vontade. O que se passa?

É a bexiga tímida, ou melhor, parurese, em linguagem técnica, científica. Numa explicação mais simples e corrente, aquele medo de usar uma casa de banho pública ou fora de casa quando há gente por perto. Ana Meirinha, médica urologista do Grupo Lusíadas, explica o que é. “É uma síndrome que não tem causas em bloqueios físicos à saída de urina. As pessoas podem ter dificuldade em iniciar a micção ou mesmo não conseguir urinar. Algumas só conseguem urinar completamente sozinhas e sem ruídos.” É mais comum do que se imagina, afeta à volta de uma em cada dez pessoas, de ambos os sexos, principalmente entre os 30 e os 40 anos, embora não se restrinja a estas idades. E mais perturbadora da qualidade de vida do que se pensa.

Ricardo Pereira e Silva, urologista da Clínica Longeva e do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, revela que a maior parte das publicações sobre o assunto está ligada à área das neurociências, sobretudo psicologia ou psiquiatria, uma vez que a bexiga tímida está associada a ansiedade e geralmente é descrita “como um subtipo específico de fobia social.”

Não há privacidade, o stress aumenta, a cabeça não consegue dizer ao esfíncter, que é um músculo, para descontrair e deixar o chichi sair. O que acontece, afinal? “A ansiedade vai levar a uma ativação do sistema nervoso simpático que vai encerrar o colo da bexiga (a transição da bexiga para a uretra), impedindo a saída de urina”, responde o urologista. “A contração involuntária ou incapacidade de relaxar os músculos pélvicos poderá também contribuir para a bexiga tímida”, acrescenta. Isto nos casos sem patologia propriamente dita.

Mas há outras situações, isto é, um quadro orgânico de base. “Por exemplo, um homem com hiperplasia benigna da próstata pode ter dificuldade em iniciar a micção e, sabendo que demora muito tempo a urinar, teme o escrutínio dos outros, o que vai agravar ainda mais o tempo até começar a urinar ou mesmo fazer com que não consiga em determinadas condições”, adianta Ricardo Pereira e Silva.

“As pessoas afetadas, em determinadas circunstâncias, podem mesmo ter de desistir ou adiar a micção”, explica Ricardo Pereira e Silva, médico urologista
(Foto: DR)

A causa não é conhecida. “Pode ter base em traumas psicológicos associados à micção ou sexualidade”, refere Ana Meirinha, dando como exemplos alguém que quando criança foi castigado pelos pais por urinar ou não urinar, alguém gozado pelos irmãos ou pelos colegas precisamente por causa disso, alguém vítima de abusos sexuais. A bexiga tímida acontece em várias circunstâncias e contextos. “A situação pode atingir até 25% da população, algumas pessoas conseguem com esforço e técnicas de distração urinar em locais públicos, outras irão urinar apenas em casa ou isoladas”, avança a médica urologista.

Infeções, cateteres, comprimidos

Este medo de urinar com pessoas por perto muda comportamentos, perturba relacionamentos com família e amigos, mexe com a capacidade de trabalhar, condiciona vidas. Evitam-se situações sociais, convívios e festas, até mesmo viagens e oportunidades de emprego. Bebem-se menos líquidos para tentar travar a vontade de ir à casa de banho. Tenta-se fazer todo o chichi em casa antes de sair, a ver se a bexiga aguenta até voltar.

As rotinas ressentem-se, como é evidente. “Se o fenómeno de não conseguir urinar, derivado do escasso acesso ao WC mais privado no quotidiano, for muito frequente, então poderá haver algumas consequências negativas a longo prazo”, constata Ricardo Pereira e Silva.

Uma coisa é certa: atrasar o chichi traz complicações. “Se uma pessoa não urinar durante muito tempo por parurese pode ter mais infeções urinárias e pode levar a um aumento do volume normal da bexiga, ao ponto de esta deixar de contrair de todo (esta última situação é rara e extrema)”, avisa Ana Meirinha. E não só. Os músculos do pavimento pélvico enfraquecem e o pouco consumo de água aumenta a probabilidade de pedra nos rins e na vesícula.

As diferenças anatómicas e os motivos fisiológicos ajudam a explicar por que razão a bexiga tímida afeta mais os homens do que as mulheres, com uma prevalência que pode chegar quase aos 30% no sexo masculino, segundo Ricardo Pereira e Silva. As mulheres não fazem chichi de pé, os homens não precisam de um espaço reservado e, normalmente, há pouco espaço entre urinóis. “Efetivamente, este problema também pode ser mais sentido pelos homens por estarem frequentemente mais expostos durante o ato de urinar – os homens com bexiga tímida podem preferir evitar o urinol, apesar de tal nem sempre ser possível”, observa. Em espaços públicos, por norma, as mulheres têm mais privacidade. “Naturalmente que as pessoas afetadas, em determinadas circunstâncias, podem mesmo ter de desistir e adiar a micção”, diz o urologista. Seja em que espaço for.

O tratamento tem duas vias consoante causas e sintomas específicos: terapia comportamental ou medicamentosa. Como fobia social, direciona-se a resolução do problema para essa esfera psicológica, com técnicas que, segundo Ricardo Pereira e Silva, “permitam suprimir a ansiedade e favorecer o relaxamento.” Por outro lado, parte da resposta do organismo pode ser minimizada com medicação.

“É uma síndrome que não tem causas em bloqueios físicos à saída de urina”, reconhece Ana Meirinha, médica urologista
(Foto: DR)

Ana Meirinha lembra que alterar hábitos também ajuda. “Prever onde e quando usar a casa de banho, urinar em casa antes de sair, programar saídas curtas ou saber que casa de banho pode usar”, especifica. “Em casos extremos, a auto cateterização (uso de cateteres para esvaziamento vesical) pode ser usada”, realça a urologista.

Bexiga tímida ainda é uma questão pouco falada, apesar da sua frequência, com impactos significativos na cabeça e no corpo. A regularidade desta condição, a mudança de hábitos por causa da situação, dúvidas por esclarecer, perguntas por fazer, o melhor é, como se sabe, consultar um médico para perceber o que se anda a passar na hora de entrar numa casa de banho fora de casa. Até porque, por vezes, a parurese coexiste com a parcoprese, essa situação que afeta pessoas que não conseguem evacuar sem um determinado nível de privacidade.