Valter Hugo Mãe

A Insurreição do Gueto de Varsóvia 1943


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A ocupação nazi de Varsóvia divide a cidade entre população ariana e judaica. Confinados num exíguo espaço, os judeus poderão ter tido ali seu pior inferno. Ao contrário do que acontecia em outros lugares, mesmo dentro da Polónia, quem partia nos vagões ia directo a Treblinka, onde não se concentrava ninguém, apenas exterminava. Os cerca de 400 mil judeus foram reduzidos em 90%. As fotografias que existem da sua vida no Gueto de Varsóvia foram feitas por alemães, sobretudo soldados nazis, que tanto se espantavam quanto regozijavam com o que testemunhavam. Documentando a miséria da população e deixando prova da desumanidade com que eles próprios eram coniventes, os alemães deixaram evidências grotescas do extremo do ódio aos judeus.

Ouvir João Soares (João Barroso Soares) discursar sobre a resistência dos judeus perante a Alemanha nazi no acontecimento do Gueto de Varsóvia em 1943 é uma lição de cidadania. O modo como discursa sem cábula, passando por quanto define aquele instante e aquela tragédia, é sinal de uma paixão pela História mas, sobretudo, da urgência em lembrar a atrocidade. Lembrar “A Insurreição do Gueto de Varsóvia 1943”, título do livro que a Livraria Lello publica, 80 anos depois, não passa pelo exercício meramente académico de saber quem foram os europeus de outrora. Passa fundamentalmente pela evidência de que muito há a aprender com o passado, muito há a proteger no momento que vivemos, diante de um futuro sempre incerto.

Algumas coisas fazem-se por um imperativo de cidadania, como se fossem parte incondicional dos nervos que a vida nos traz. As pessoas juntam-se, organizam-se e comprometem-se segundo suas naturezas e seus sonhos colectivos. O livro que a Lello edita resulta claramente dos nervos de quem não pôde demitir-se de apelar para a consciência do que esteve em causa nesta resistência fundamental pela vida e pela dignidade. Além de Soares, o Colectivo de Insurretos, como se denominam, é composto por Adélio Gomes, Jorge Silva (que assina o magnífico design do livro), José Manuel Saraiva e Manuela Rêgo.

Tudo para que se favoreça o Museu do Gueto de Varsóvia, está em causa a bravura de um grupo de insubmissos que, sabendo embora que morreriam, decidiram dar resposta e morrer num gesto de guerra e oposição. Liderados por Mordechai Anielewicz, o grupo de jovens que enfrentaram como puderam o monstro nazi é para sempre lembrado no testemunho de um raríssimo sobrevivente, Marek Edelman, que escreve: “Carroças carregadas de cadáveres percorriam as ruas. Os corpos eram colocados uns em cima dos outros, e as cabeças batiam umas contra as outras e contra as tábuas das carroças que rolavam pelas ruas empedradas”.

Composto por inúmeras fotografias, testemunhos, estatísticas, biografias e uma cronologia completa, este livro ainda conta com dois poemas inéditos de Manuel Alberto Valente e de Yvette Centeno. Centeno diz: “Em Lodz / o guarda chamou as mães: / peguem nas crianças / levem-nas para o jardim / sentem-nas viradas / de costas para mim // Ensinem-lhes o jogo / do 1, 2, 3 // À contagem do três / não olhem para trás: / ficarão a dormir / numa cama de folhas // quem sabe sem sofrer…”.

Há tempos que um livro não me impressionava assim.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)