Rui Cardoso Martins

Uma discoteca aberta

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A pele do porteiro, no tribunal, era cinzenta e ele vestia um fato de treino largo. Era débil, esquelético. Mas tinha um esqueleto grande por debaixo da pele de cartão amassado. As rótulas pareciam bolas. O cabelo, estranhamente jovem.

– Empurrou-me e bateu-me.

– E o senhor respondeu.

O homem disse que já tinha respondido a isso, que sim, que respondera ao outro, e que se envolveram os dois no chão.

– Eu, pelo menos, caí. Ele não sei.

– Foi aí que viu o ferimento no joelho?

– Não sei, reparei que tinha o joelho e a cara com sangue.

– Tinha dores?

– Na altura uma pessoa está com os nervos e não sente nada.

Disse que isto se passou há mais ou menos três anos.

– Antes da pandemia?

– Antes da pandemia pelo menos um ano!

Há três anos este homem era porteiro de uma discoteca. Há três anos havia discotecas abertas todo o ano, até discotecas para passar de um ano para o ano seguinte, sítios onde se respirava sem limites o ar da boca dos outros. E gente à porta a pedir para entrar.

Ele informou um homem de que teria de pagar.

– E ele diz: “Eu não pago para entrar nesta merda!”. E deu-me um murro. Eu respondi, claro. Estava a sangrar daqui do sobrolho e do joelho.

Há três anos, eram estes os problemas das discotecas. Duas jovens importunadas, o cliente a falar alto, pelos vistos em defesa delas. Mas a falar muito.

– Tínhamos esta orientação do patrão de que, quando aparecessem clientes que pudessem criar problemas, pedirmos consumo obrigatório, e era esse o caso. Lá dentro, tinha direito a cinco bebidas, não é?

– O senhor estava a barrar a entrada pondo o corpo à frente?, perguntou-lhe a juíza.

– Sim. A fila era enorme, muita gente a querer entrar. Ele estava sempre a falar por causa da situação delas, das raparigas, a arranjar confusão com outras pessoas.

Quando terminou o seu testemunho, ao antigo porteiro e queixoso custou-lhe levantar-se. Fez uma careta estranha, de recém-operado às vísceras. Disseram-lhe para não se apressar. Saiu devagar, como um leão velho para o canto da floresta.

Depois falou o acusado. Um chefe cozinheiro que ia à discoteca.

– Ele deu-me um soco a mim primeiro!

– Está disposto a pedir desculpa?, perguntou-lhe a sua advogada.

– Sim, mas se ele me pedir desculpa também. Eu é que fui agredido primeiro!

A advogada virou-se para a juíza:

– Se o outro também pedir desculpa do soco que deu…

– Sotora, o arguido é este senhor, ele é que saberá de que forma poderá resolver melhor a situação!

Nada de desculpas. Tentaram colocar no processo uma factura de dentista. Um dente partido, um abcesso.

– Derivado ao soco que levou do autor desta queixa, disse a advogada.

Derivados dentários de soco… mas o tribunal não aceitou. O documento deveria ter sido entregue na contestação. Dele não resulta qualquer ligação com as ofensas. O chefe de cozinha disse que partilha a casa com o companheiro. É um homem grande, de braços largos. Que está em Portugal desde 2015. Foi cabo nas Forças Armadas do Brasil. Mas a procuradora acreditava no porteiro.

– O ofendido hoje foi espontâneo, contou a história como se lembrava. Disse que não se recordava exactamente. Quando não se recorda, diz que não se lembra. O seu depoimento é mais compatível com as regras da experiência.

Não havia videovigilância na discoteca. Eram noites de uma noite mais clara da que temos agora, agora a Lua usa máscara. O cozinheiro disse a última coisa contra a acusação de agressão:

– Eu só queria lembrar que ele não era assim. Ele era grande, saudável. E tudo o que ele disse aqui foi ao contrário!

Não ia bater num homem doente. Se soubesse que ia ser acusado, não ia faltar a sua principal testemunha, que não apareceu.

– Eu procurava essa senhora por Lisboa inteira!

Em Lisboa, de novo fechada à noite? Feliz Ano.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)