Joel Neto

Três convicções e um calafrio


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

O parceiro assentia, cheio de responsabilidade. E eu teria provavelmente feito como o Torga: dava-lhes toda a razão e um comprimido.

Ontem, na clínica, um futuro pai dizia a outro que a sua prioridade, enquanto educador, será combater o individualismo. Punha um ar moralista, que confundia com o da ilustração, e repetia: “Vivemos numa sociedade muito individualista”. O parceiro assentia, cheio de responsabilidade. E eu teria provavelmente feito como o Torga: dava-lhes toda a razão e um comprimido. Mas a verdade é que não sei se quero roubar ao meu filho o apreço pela ideia de indivíduo.

Claro: foi a cooperação que permitiu a esta espécie sobreviver. Não me ocorre sugerir a uma criança que combata sozinha um fogo, uma inundação, um vírus. Mas o mito está bem e recomenda-se, e nunca seria eu a educar filhos contra o poder redentor das histórias. De resto, egoísmo, não. Egocentrismo, o menos possível. Solipsismo, nem pensar. Já individualismo, não sei. Individualismo, q.b., diria.

Entretanto, se me perguntam em que modelo de educação me ocorre inspirar-me, o primeiro que me vem à cabeça, por ora, é o do Diogo. Há uns oito anos que o Diogo me corta o cabelo – não estou certo de que frequente as clínicas em que a classe média vai dar uso aos seguros. Mas basta falar um minuto com ele para uma pessoa saber com quem fala.

Versa o futebol, o tema forte da sua barbearia, e é um prodígio de razoabilidade (ademais para um benfiquista). Versa a música electrónica, em que chegou a cultivar aspirações; ou a economia, contra a qual todo o empresário tem de remar; ou a justiça social, área em que os empresários tendem a cultivar ideias perturbadoras – ensina-me sempre.

Com a filha, que tem quatro anos, passa a vida a negociar. A miúda quer uma coisa e ele aproveita para a comprometer com outra. Conversa imenso. “Tem de se ouvir, sr. Joel. Se eles andam com uma ideia na cabeça, pode fazer sentido”, aconselha-me. “E, pronto, as necessidades deles primeiro. Pensar na maneira como percebem as coisas, que não é a nossa. E ser firme, que eles apanham-nos a fraqueza.”

Tenho provas da eloquência: há dois meses, a garota queixou-se do peito e um cardiologista torceu o nariz. O Diogo e a mulher marcaram logo uma série de especialistas no continente. Reuniram o que tinham e talvez não tivessem. Mas, ainda antes de viajarem, o Diogo confidenciou-me: “Ela está a gostar da atenção. A minha esperança é essa”. E foi certinho: era falso alarme.

Não sei se chego lá. Tenho uma ou outra convicção: gostava de preparar o meu filho para a autonomia; de ensinar-lhe a nunca desistir de mudar o Mundo; de convencê-lo a fazer planos até ao último dia; de estimulá-lo a arrepender-se e tentar de novo. Quem não se arrepende de nada, ou não viveu, ou acertou em tudo, o que é a mesma coisa.

Mas, para lá disso, estou tão confuso como aqueles dois. Sobretudo, temo não saber identificar o momento de ter “a” conversa – aquela que o meu teve comigo aos oito anos, e que guiou a minha vida: “Tens de ter boas notas para poderes ir para fora estudar. Não te limites às dimensões de uma ilha”. Mas talvez “a” conversa não tenha de se ter num dia, e sim ao longo de uma infância – e não necessariamente por palavras.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)