Quiet quitting: não é fazer menos, é exigir mais

Em resumo, a "desistência silenciosa" não é uma tendência na qual os trabalhadores querem fazer menos. É antes uma exigência de reconhecimento

As redes sociais popularizaram o tema mas, na verdade, é um novo nome para um conceito antigo: fazer apenas o que está no contrato. Mais do que desistir do trabalho, esta é uma forma de exigir melhores condições - e não é assim tão silenciosa.

“Desistir da ideia de ir além do esperado.” Esta é a frase que deu origem ao mais recente fenómeno digital no que diz respeito à área laboral. O original, em inglês, – “quitting the idea of going above and beyond” – pode ser lido num vídeo publicado na rede social TikTok, por um utilizador com, atualmente, pouco mais de 12 mil seguidores. Mas o vídeo obteve proporções que o próprio criador não estava à espera: 3,5 milhões de visualizações, meio milhão de gostos e quase cinco mil comentários.

O termo ali explicado, “quiet quitting”, ganhou vida. Prolongando-se no tempo, além dos 17 segundos do clipe multimédia. Chegou às restantes redes sociais, aos blogues, aos comentadores, às empresas e até aos media.

Apesar da grande azáfama que se tem criado à volta do “novo” conceito, – entre aspas porque, como veremos mais à frente, não é assim tão novo – ainda há muitas dúvidas. Uns dizem que é apenas deixar de fazer horas extras. Outros dizem que é passar a fazer o estritamente contratualizado legalmente. Há quem refira que é fazer apenas o necessário com elevada qualidade, mas há quem riposte afirmando que é deixar de fazer o trabalho com cuidado e atenção. Afinal, o que é o “quiet quitting” e porque é que parece ter pouco de “desistência silenciosa” (tradução do inglês)?

Sara Baía, consultora de recursos humanos, afirma que a definição mais correta é “as pessoas fazerem apenas aquilo para o qual são pagas, sem exceder expectativas”. Na prática, explica, pode significar muita coisa: não fazer uns dez minutos a mais no fim do turno para acabar uma determinada tarefa; não aceitar fazer horas extras; não fazer turnos ou tarefas para os quais não se está contratado; não carregar mais responsabilidade do que aquela para a qual se é pago. Entre tantas outras. A variedade de possibilidades pode até ser encontrada, diz a especialista, nos próprios comentários ao vídeo original. “Há testemunhos de diferentes pessoas a relatar diferentes experiências. Diferentes tanto na forma como exerceram o ‘quiet quitting’, como depois nas consequências que isso teve no emprego delas – se foram despedidas, se levaram um sermão, se passaram a receber menos, etc.”

Independentemente da forma como se coloca em prática o “quiet quitting” e dos resultados que o mesmo acarreta, os objetivos parecem ser unânimes: exigir melhores condições de trabalho ou reconhecimento, dar valor à vida fora do horário laboral e cuidar da saúde mental.

Refletimos durante a pandemia

E foi exatamente numa fase em que a saúde mental era tão comentada que o termo começou a ganhar espaço no domínio público. Apesar de o vídeo referido no início deste texto ter sido publicado em julho deste ano, o fenómeno já tem vindo a ser comentado entre especialistas em gestão de empresas e recursos humanos desde a pandemia. Parece que, enquanto estivemos privados da nossa vida, começámos a dar um novo valor do trabalho.

Para Anabela Carneiro, docente na Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), uma das questões fulcrais que levou ao fenómeno do “quiet quitting” foi a tomada de consciência coletiva, em particular no Mundo Ocidental, de que o reconhecimento laboral já não é, para muitos, um objetivo de vida. “A pandemia foi disruptiva para a forma como olhamos para o trabalho, já não queremos ir além dos limites.” E os limites, esses, são traçados individualmente pelo que cada um considera que deve ser o peso do trabalho na sua vida, daí o termo, agora tão divulgado, não ter uma definição única. Mas em nenhum caso, realça, o objetivo é deixar de ter decoro ou cuidado com as tarefas que se realiza.

Ainda que a divulgação abrangente do termo faça parecer que a exigência “passiva” de determinadas condições laborais é acessível a todos, Anabela Carneiro alerta para os grupos fragilizados. “Trabalhadores precários, em início de carreira, com pessoas dependentes de si ou em níveis socioeconómicos baixos não têm, muitas vezes, este poder negocial.”

Diferentes países, diferentes ritmos

Apesar de ter sido um fenómeno, à imagem da pandemia, quase global, João Cerejeira demarca a origem da divulgação deste conceito nos Estados Unidos. “A economia americana é mais flexível, com menor presença do Estado e, além de ter uma reação mais rápida às crises, tanto na queda como na recuperação, fenómenos laborais como o ‘quiet quitting’ também têm um impacto maior”, esclarece o economista e docente da Universidade do Minho.

Para o especialista, no caso norte-americano, o “quiet quitting” estendeu-se para lá das exigências, chegando mesmo a haver uma quebra na mão de obra disponível. “Uma explicação é as pessoas terem passado a estar mais conscientes do peso do trabalho na sua vida, mas o fenómeno poderá também ser explicado do ponto de vista económico.” Nos Estados Unidos, relata, a recuperação económica no pós-pandemia aconteceu em setores diferentes daqueles que tinham parado e também se deu em locais distintos dos que ficaram estagnados.

Em consequência, foi possível observar uma mobilidade tanto entre setores como geográfica, em que, em determinadas atividades ou cidades, as pessoas não se mostraram disponíveis para trabalhar, por conseguirem melhores condições noutros locais. A isto, o economista chama de “quiet quitting”, ou também “demissão passiva”, em português.

Por cá, João Cerejeira considera “abusivo” transpor o fenómeno para a realidade portuguesa. O emprego, argumenta, “está em níveis que não se viam há décadas” e, por isso, não tem havido uma “deserção” – “o que não significa que não se procure fazer exigências”, acrescenta.

Não é desistir, é exigir melhor

Em resumo, a “desistência silenciosa”, ou também chamada de “demissão passiva”, como vimos, do original “quiet quitting”, não é uma tendência na qual os trabalhadores querem fazer menos. É antes uma exigência de reconhecimento. E não vem só. Anabela Carneiro, da FEP, realça o momento de mudança no qual nos encontramos. A grande demissão. Trabalho remoto. Semana de quatro dias. Horários flexíveis. “Não quer dizer que muitas das mudanças vão acontecer já mas, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer uma alteração da organização do trabalho.” A também economista relembra que, até serem alcançadas as 40 horas semanais de trabalho hoje estipuladas, “foi preciso esperar muito”.

Contudo, não é apenas a forma como vemos a atividade laboral que se encontra em mudança, também os protagonistas se têm alterado. Anabela Carneiro refere a ideia de que as gerações mais velhas são vistas, muitas vezes, como sendo, em parte, “workaholic”, ou seja, que depositam grande parte da vida no trabalho. O que tem mudado.

João Cerejeira corrobora e considera que a maior exigência de condições de trabalho por parte das gerações mais jovens acontece por “duas vias”. A primeira é o facto de os salários terem crescido pouco e, se o preço por tempo de trabalho é baixo, o preço por tempo de não-trabalho também o é. Ou seja, trabalhar menos tempo “custa menos”. Outra explicação é a saída, cada vez mais tardia, da casa dos pais, prolongando a dependência e estabilidade e permitindo fazer exigências. Também a gestão de expectativas é importante, já que, com a estagnação da economia e a cada vez mais difícil progressão na carreira, os jovens não veem um futuro promissor no emprego, não considerando, então, que ir além do esperado trará alguma recompensa.

No entanto, o economista sublinha que estas explicações não passam de especulações, já que os números não dizem o mesmo. “O desemprego jovem tem vindo a baixar.”

A exigência é silenciosa?

A última mudança assinalada faz referência ao próprio nome do fenómeno – “quiet” ou “silencioso”. Sara Baía, especialista em recursos humanos, garante que estas exigências não têm muito de “silenciosas”, já que “são barulhentas pelo impacto que têm na organização e produtividade da empresa”.

A economista Anabela Carneiro destaca a importância das redes sociais para uma outra mudança que tem vindo a ser notada: a desvalorização e perda de poder dos sindicatos. “Os sindicatos funcionam como a voz de protesto e a densidade sindical tem vindo a diminuir, em Portugal e noutros países.” Estes movimentos, prossegue, “surgem cada vez mais na Internet, um espaço que encontramos para nos fazermos ouvir”.

Tal como aconteceu com o “quiet quitting” que, na verdade, nada mais é do que dar nome a um conceito que já existe há muito e que os próprios sindicatos enfatizaram durante anos: alterar a forma como se trabalha, exigir melhores condições laborais, maior progressão na carreira, melhores horários e maior remuneração e reconhecimento. Que resulta num equilíbrio perfeito entre vida profissional e pessoal.