Valter Hugo Mãe

Obras


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O ruído é o horror. Até o rádio que os senhores ligam, a passar aquele baile popular constante, uns tipos a falar das mulheres dos outros, de passar a noite a fazer tum tum, ou a ir de comboio não sei para onde, é um tormento à minha esperança.

Ter a casa em obras é como estar de cirurgia à molécula da felicidade. Sabemos bem como vai ser bom mais tarde, mas adiamos tudo o que pudermos, a vida inteira parece imprestável enquanto não virmos as coisas limpas, postas em silêncio, e voltarmos a colocar a mobília com nossos cacos afectivos no lugar.

Enquanto isto for de buracos em toda a parte, canos mudados e poeiras pelas tripas das pedras adentro, a casa é o horror. O ruído é o horror. Até o rádio que os senhores ligam, a passar aquele baile popular constante, uns tipos a falar das mulheres dos outros, de passar a noite a fazer tum tum, ou a ir de comboio não sei para onde, é um tormento à minha esperança.

As casas, por mais perenes e passíveis de acolher quenquer, são substancialmente seres de relação íntima. No meu caso, tendencialmente monogâmicas, feitas para pensarem só em mim, cheias de mimos para comigo como se apaixonadas intensamente pela pessoa que sou. Em tempo de obras, por outro lado, há uma promiscuidade, uma partilha inelutável e sem pudores, que me encorna um bocadinho e me angustia sem fim. Estou, por isso, a contar os minutinhos todos para que terminem de esburacar para meter canos novos, para azulejos, para o pladur, o tecto com a mania, a bendita cozinha, o chão que se lava só dos nervos. Estou a contar minutinhos e a envelhecer impiedosamente. É o que sinto.

A gata vadia que vem por aqui a pedinchar enrola-se nos homens e, se puder, sobe à banca onde guardo o saco com comida e rouba com toda a honestidade possível. A Picasso não é de manigâncias. A fome fá-la transparente e dá-lhe direitos. Julgo que é uma gata bela e lúcida. O Mosquitinhos anda a chamar pelo Caravaggio, o crianço medroso que se vai aproximando porque tem mesmo de sobreviver. Os homens da obra, de martelos na mão, abreviam os gatos para que isto não seja o dia inteiro de festinhas.

Acabo de decidir que a oliveira é um estardalho no lugar errado. Caem as azeitonas pelas escadas acima e apodrecem por ali como caganitas de coelho que ninguém quer. Vou na ciência de podar severamente a oliveira porque é da natureza tolerarem as podas mais agressivas. Além de alojar mil aranhas e metermos a cara nesses véus ao passar um nico por debaixo, a oliveira nem dá um fruto de jeito. Dá assim uma coisa pequena que é mais uma porcaria mandada embora e menos uma fortuna alimentar.

Fico por ali. Como não posso com o meticuloso das obras, dá-me fanicos ver aquilo bocadinho a bocadinho, estou mais pelo jardim a atazanar o sossego das plantas, que devem comentar entre elas o azar de eu não ter cultura botânica nenhuma, e tudo me parecer melhor para umas esculturas, umas figuras vidradas da Júlia e do António Ramalho. Algo que enfeite a rua como uma casa de bonecas aberta, completa. Uma rua para passearem as bonecas e, naturalmente, as pessoas felizes. As que brincam, as que ainda sonham.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)