Guia para lidar com a ansiedade provocada pela inflação

O aumento generalizado nos preços dos bens e dos serviços das últimas décadas tem feito mais estragos do que se imagina. É difícil não se sentir apreensivo com o futuro. Mas há estratégias para lidar com a preocupação excessiva e até para gerir melhor as finanças.

Maria Vieira, 32 anos, vive sozinha, embora “viver sozinha neste momento e com a inflação dos imóveis a que se assiste em Portugal e no resto da Europa seja muito complicado”. “Parece que em pleno século XXI tem que se ter um parceiro ou uma parceira para poder ter uma vida independente. 80% dos meus amigos ainda vivem em casa dos pais.”

Desde que a palavra “inflação” entrou repetidamente nos noticiários que anda embrulhada na ansiedade, sobretudo no que toca à habitação. No medo do possível aumento da renda – apesar de ainda não ter sido contactada pela senhoria nesse sentido -, ou de perder a ajuda que consegue através do programa de apoio ao arrendamento jovem Porta 65, graças às horas extraordinárias que tem vindo a fazer para conseguir equilibrar o orçamento no final do mês (um dos critérios que a podem tornar não legível para a atribuição do apoio). “Obviamente que estou preocupada. É triste ter 32 anos e estar dependente do apoio do Estado. E abdicar do lazer para fazer horas extraordinárias, passar todos os fins de semana a trabalhar. Se porventura perder o apoio para pagar a renda, terei que sair desta casa. Se isso me tira o sono? Tira. Muitas das insónias que tenho é por causa disso.”

Não quer ser uma escrava do trabalho, “porque a vida não pode ser só trabalhar”, mas é difícil fugir a uma realidade inevitável. “Quando vou ao supermercado vejo os preços e fico horrorizada. Tudo disparou. E abdico muito mais de sair, isso sem dúvida.” Tem amigos que já têm dois empregos para conseguirem responder aos aumentos, outros que já falam em emigração. E, apesar de se sentir uma privilegiada por estar efetiva, nem isso lhe traz tranquilidade. A inflação veio juntar-se à pandemia e aos impactos da guerra na Ucrânia e fê-la pôr tudo em perspetiva. “O meu sonho de ser mãe foi por água abaixo, nunca tive tantas certezas disso, porque não tenho forma de sustentar um filho. Neste momento, só espero não ter que voltar para casa dos meus pais.”

O aumento da inflação na Europa, que vai das taxas de juro aos preços da energia e da alimentação, está a fazer disparar a ansiedade financeira entre os consumidores. Segundo o jornal “Expresso”, a inflação já obriga metade dos portugueses a cortar nas compras de supermercado. E um inquérito recente feito nos Estados Unidos pela American Psychiatric Association concluiu que a inflação já ultrapassou a covid como maior causa de ansiedade entre americanos. Segundo Marta Rodrigues, psicóloga clínica que trabalha com jovens adultos, também por cá “já se nota alguma ansiedade, porque o custo de vida aumentou, é um facto”. E tem impacto até no processo terapêutico. “Tem acontecido termos pessoas numa situação de acompanhamento semanal a pedirem para passar para quinzenal devido às preocupações com o custo de vida.” Por outro lado, há um dado curioso, de acordo com a psicóloga. Apesar de no verão haver tendencialmente um decréscimo da procura por terapia, em comparação com os verões passados, neste houve uma procura maior, “muito graças à permanência de fatores de stress”.

Crises e saúde mental: uma junção típica

Certo é que as crises e a ansiedade sempre andaram de mãos dadas. “É típico. Nós temos, tendencialmente, uma necessidade muito grande de previsibilidade. E isto é um fator de muita incerteza. Já temos tantos aspetos na nossa vida que não controlamos que quando surge mais uma coisa incerta, tendemos a responder com alguma ansiedade”, explica Marta Rodrigues. Aliás, segundo Tiago Pereira, também psicólogo, “temos a experiência da crise socioeconómica do início da década, que teve um impacto muito grande na ansiedade, depressão e noutros problemas de saúde mental”. É fácil perceber, “tendo em conta o contexto português, que para uma parte da população, sobretudo a mais vulnerável, a inflação possa trazer níveis de stress e ansiedade significativos”. Até porque há uma acumulação: já vínhamos de uma pandemia e da incerteza de uma guerra na Europa.
Mas Marta Rodrigues alerta que a ansiedade não é uma coisa má por si só. “Vem para nos proteger, para nos avisar que temos que fazer uma mudança proativa. O problema é quando atinge níveis tão altos que chega a comprometer o nosso bem-estar.”

E nesse campo, segundo o inquérito feito nos Estados Unidos, os “Millennials” e a “Geração Z” deverão ser dos mais afetados pela preocupação excessiva com a perda de rendimento. O que faz sentido. “Está associado à precariedade. Estão numa fase da sua vida de criar bases, de tomar decisões, construir família, procurar casa. Não me surpreende que sejam os jovens os mais impactados. É mais uma crise que vem interromper o seu movimento de autonomia”, refere Tiago Pereira, que acrescenta que há um conjunto de estudos desde a década de 1980 que liga a precariedade, a pobreza e exclusão com problemas de saúde psicológica. “É um ciclo que se alimenta.”

Como se manifesta e estratégias

Apesar de tudo, há estratégias que se podem usar para tentar gerir melhor a ansiedade. Mas, antes disso, saber identificar os sintomas é meio caminho andado. É certo que variam muito de pessoa para pessoa, como diz Marta Rodrigues, a ansiedade não entra numa caixinha. Ainda assim, os mais comuns podem ir desde sensações físicas como dores de cabeça, tonturas, cansaço fora do normal pelo desgaste que a ansiedade gera até ao impacto cognitivo. “A preocupação excessiva, a insónia, a ruminação, aquele estado em que estamos sempre a pensar na mesma coisa, em círculos que não levam a lado nenhum”, comenta a psicóloga. Tiago Pereira também aponta que o mal-estar, o medo, o stress podem levar-nos não só a dormirmos menos bem, como podem ter impacto nos hábitos alimentares, “uma necessidade de comer mais ou o contrário”, levar a menos propensão para atividades físicas, para nos relacionarmos com outras pessoas, numa espiral negativa.

O objetivo não é não pensar, mas tentar gerir melhor o tempo que dedicamos a esta preocupação. “É pensar para encontrar soluções e não pensar para alimentar pensamentos depressivos e estados ansiogénicos”, esclarece Marta Rodrigues, que reconhece que a inflação reduz a qualidade de vida e por isso deixa menos “dinheiro para recorrer a psicólogos, para sair para consumir cultura, para cuidar de nós”. Contudo, há dicas. Uma delas é não se isolar, reforçar a conexão com pessoas próximas. Procurar conversar com alguém. “Se é para ruminar que ruminem acompanhados. Porque acabam por libertar um bocadinho as frustrações.” E não descurar o autocuidado, procurando manter o mais possível atividades que nos fazem bem. Segundo Tiago Pereira, é importante reforçar o triângulo sono-alimentação-atividade física. “E ter alguma esperança. Pensar que já passámos por períodos semelhantes, provavelmente até de maiores dificuldades, e grande parte das pessoas conseguiu adaptar-se e resistir.”

De qualquer forma, quando sentimos que algo não está bem, que o nosso funcionamento geral está a ser afetado, que começamos a deixar de sentir prazer em coisas que antes gostávamos realmente de fazer, é fundamental perceber que isso não é normal e procurar ajuda profissional. Marta Rodrigues alerta que “há algumas associações que têm consultas de psicologia e psiquiatria a preços mais acessíveis e há bolsas sociais para casos em que as pessoas não podem pagar”. Tiago Pereira diz que “as pessoas têm a ideia de que a ajuda é sempre algo muito prolongado no tempo”. Nem sempre o é. “Por vezes, é uma pequena ajuda no momento, só a possibilidade de conversar com um profissional que dá algum sentido ao que a pessoa está a viver é suficiente.”

Antecipar e gerir melhor

Outra estratégia importante é introduzir a maior previsibilidade e controlo possível em relação às nossas finanças. Focar no presente e no que podemos controlar. “Quanto mais preparados estivermos, menos incerteza há, maior a sensação de controlo e menos impacto em nós vai ter”, sublinha Marta Rodrigues. Por isso mesmo, para Carina Meireles, especialista em finanças pessoais, “esta é a altura para começar a analisar com toda a atenção quanto gasta mensalmente em despesas variáveis e fixas, perceber ao detalhe onde gasta mais dinheiro e se não está a ter despesas supérfluas”. Duas das despesas representativas do nosso orçamento são os bancos (contas à ordem, créditos, seguros, etc.) e outra despesa é a alimentação lá de casa. “A análise deve ser feita com o objetivo de reduzir ou eliminar o que não está a utilizar. Devemos fazer perguntas como: qual o valor que gasto em alimentação por mês? Posso reduzir algumas despesas no meu orçamento familiar? Qual o montante total das minhas responsabilidades fixas mensais? Costumo controlar os meus gastos com que regularidade?”, especifica.

Carina Meireles avisa que não existe uma fórmula mágica, mas “é importante respondermos a questões como estas e começarmos a olhar para as nossas finanças pessoais da forma certa, partilhando em família e aprendermos como lidar e gerir o nosso dinheiro para que situações como as que estamos a passar, com os aumentos consecutivos dos preços, não tenham impactos tão significativos”. Quanto mais bem planeada no tempo estiver a nossa vida financeira, frisa a especialista, mais fácil será gerir toda a pressão de alteração dos preços, subida das taxas de juro ou qualquer despesa imprevisível que possa acontecer.

Estratégias para antecipar o impacto da inflação

• Ter um fundo de emergência é das coisas mais importantes. É um valor que nos possibilita fazer face a eventualidades que possam surgir, mantendo o mesmo nível de vida, como por exemplo, desemprego ou alguma situação inesperada de saúde.

• Ter um orçamento bem definido principalmente contemplando as despesas variáveis e fixas, mas também não esquecendo as pontuais.

• Ter um bom planeamento financeiro e fazer um acompanhamento regular (uma vez por mês). Conseguirmos ter um planeamento adequado ao nosso dia a dia e ter um controlo sobre os nossos gastos é cada vez mais fundamental e deve ser considerado como uma prioridade da nossa vida financeira.

• Fazer uma revisão de todas as despesas com os bancos. Se está a pagar comissão de gestão de conta, optar por bancos online como por exemplo o Unibanco ou o ActivoBank. Analisar as taxas de juro que tem com os créditos, verificar e comparar com a concorrência e sempre que possível fazer amortizações parciais. Analisar se não está a pagar por produtos que não utiliza, como cartão de crédito.

• Dar a contagem da água, luz e gás uma vez por mês para evitar atualizações. Desta forma, vai pagar exatamente o que gasta.

• Renegociar contratos de serviços, nomeadamente telecomunicações, para antecipar os potenciais aumentos do próximo ano.