Jorge Manuel Lopes

Exercícios de mecânica aplicada


As escolhas musicais de Jorge Manuel Lopes.

Não há paralelo para a trajetória definida pelos Kraftwerk a partir de 1990. Depois de conceberem seis álbuns, entre 1974 e 86, que inventaram um compartimento na música popular (e, no caminho, rasgaram autoestradas para o nascimento do tecno e da synthpop), o grupo liderado por Ralf Hütter e Florian Schneider passou os últimos 32 anos a reinventar, remisturar, reempacotar, refinar e reapresentar o legado. Em vez de composições novas, a sua (evidente) progressão estética nas últimas décadas traduz-se em infinitas afinações de material conhecido e em digressões que são uma obra-prima de minimalismo cénico e sumptuosidade visual. Ao disco de remisturas “The mix” (1991) seguiu-se o derradeiro álbum de originais (“Tour de France soundtracks”, de 2003, com ponto de partida num single de 1983), dois registos ao vivo (“Minimum-maximum” e “3-D the catalogue”, de 2005 e 2017, respetivamente), uma caixa-resumo (“The catalogue”, 2009) e agora “Remixes” (Kling Klang/Warner).

Lançado via streaming no fim de 2020 e agora disponibilizado em CD e LP, “Remixes” agrega remisturas dos próprios Kraftwerk e de outra gente ilustre, produzidas desde 1991, a que se junta um trio de recauchutagens novas em folha do grupo, agora nas mãos de um único fundador (Hütter; Schneider faleceu há dois anos) ladeado por Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen.

Aquilo a que se assiste em “Remixes” é a um fascinante e paciente esculpir digital de matéria familiar.

Umas vezes depurando o som, deixando-o mais cristalino e despido. Outras vezes iluminando e ampliando pormenores menos imediatos. Os convidados para exercício de mecânica aplicada são exemplares nas abordagens, tratando a matéria-prima com estima e voz própria. François Kevorkian leva “Radioactivity” a passear pelo espaço. Os Orbital pintam “Expo remix” com um arco-íris psicadélico, e o mesmo tema é convidado a conhecer Detroit, a fonte do tecno, por DJ Rolando. Os franceses Alex Gopher e Étienne de Crécy fazem de “Aero dynamik” uma peça majestosa, frenética. Todos ficam a ganhar.