Jorge Manuel Lopes

Com Beyoncé a carne é forte


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

“Renaissance” é uma aragem fresca no percurso de Beyoncé, interrompendo seis anos de ausência de álbuns em nome próprio. Tanto “Beyoncé”, de 2013, como “Lemonade”, de 2016, tinham o olhar mais fixado em questões sociais e políticas. “Renaissance” aponta para uma maior intimidade do olhar, em 16 canções que se deixam levar pelo desejo, pela sensualidade, pelo hedonismo.

Em comum com os dois álbuns anteriores (e com “I am… Sasha Fierce”, de 2008), “Renaissance” tece uma moldura sonora concetual que ampara o tom geral das composições. Apesar da diversidade rítmica, as faixas agrupam-se em blocos sem interrupções, praticamente uma megamix. Tanto na forma como no conteúdo e inspiração, faz companhia a álbuns-suite dançáveis marcantes, como a mão-cheia de discos orquestrados por Donna Summer com Giorgio Moroder e Peter Bellotte entre 1975 e 77 (sem coincidência, Beyoncé despede-se do novo registo com “Summer renaissance”, que recorre ao ronronar eletrónico do standard “I feel love”); o monumental “Confessions on a dance floor”, de 2005, o registo mais consistente de Madonna; e “Flesh tone”, a viagem intergaláctica de Kelis saída em 2010.

Nesta festa há lugar para carnavais de rua à moda de Nova Orleães com a produtora Honey Dijon. Há funk mais leve do que o ar em “Cuff it” (Nile Rodgers na guitarra, Sheila E. na percussão). Há dancehall em “Move”, com Grace Jones e Tems. Há tecno com acabamentos industriais e gospel em “Pure/Honey”.

E há pelo menos três clássicos instantâneos: “Cuff it”, o disco-funk líquido e crepuscular de “Virgo’s groove” e o single que anunciou este disco, “Break my soul”, atualização do namoro do house com a pop que faz dançar há 30 anos, com um sample da voz de Big Freedia que incendeia o ar. Neste trio e na maioria das canções de “Renaissance” assiste-se ao grato ressurgimento do produtor e compositor Terius Nash, aliás The-Dream, crucial no r&b na década de 2000. Beyoncé nunca tinha sido tão camaleónica na interpretação; incontornável, surpreendente, virtuosa, jamais impositiva.