Margarida Rebelo Pinto

Boa sorte, Nancy


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O filme “Boa sorte, Leo Grande” desafia uma série de paradigmas e de preconceitos sobre a juventude, a sexualidade, a liberdade de cada um fazer o que bem entende com o seu corpo e o seu prazer.

O envelhecimento das mulheres não é tema fácil para ninguém, numa sociedade transviada de filtros no Instagram e de truques estéticos mais ou menos invasivos que podem correr mais ou menos bem. Diz-se que os 40 são os novos 30, que os 50 são os novos 40, até aí tudo bem, mas quando se dobra a curva dos 60, a ideia de juventude entala-se entre um estado de espírito indómito e a propensão pueril para quebrar barreiras, chocando de frente com o ridículo. A chamada meia-idade, que provoca em muitas mulheres a obsessão em atrasar o tempo e em muitos homens o pânico de perder a endurance, faz com que estes procurem a companhia de mulheres mais novas – não raro mais novas do que as próprias filhas, – enquanto a maior parte das mulheres se conforma com a sua condição.

O filme “Boa sorte, Leo Grande” desafia uma série de paradigmas e de preconceitos sobre a juventude, a sexualidade, a liberdade de cada um fazer o que bem entende com o seu corpo e o seu prazer. Em quatro quadros, Nancy, professora de moral reformada e viúva, magistralmente encarnada por Emma Thompson, encontra-se com Leo, sex worker, usando a moderna e politicamente correta nomenclatura em voga. Nancy é stressada, insegura com o seu corpo e ignorante em relação à sua sexualidade. Já passou dos 60, mas o envelhecimento não é o seu grande problema, porque nunca se sentiu nem atraente nem desejada quando era nova. É uma mulher com a cabeça repleta de pregos e de nós, exercendo sobre si mesma o papel do carrasco moral que transpira por todos os poros da pele já translúcida e inevitavelmente flácida. Leo é um jovem inteligente e sensível, rejeitado pela mãe, que consegue encontrar alguma poesia e dignidade q.b. na sua profissão. O resultado é uma hora de diálogos inteligentes e surpreendentes, enquanto Leo tenta que Nancy solte o corpo e a cabeça em busca desse deus chamado prazer. Nancy quer sentir-se livre e entregar-se, mas não consegue, e quando começa a sentir que consegue, afinal não quer. O medo de falhar, a vergonha, os complexos de culpa e insegurança perante como agir com o outro mergulham-na num turbilhão, tornando os seus atos erráticos. O conflito interno domina-a como um monstro. Enquanto personagem, está entre as mais verosímeis que o cinema já construiu, ao contrário de Leo, que possui uma maturidade, um grau de empatia e um nível de inteligência surpreendentes para a sua idade, soando a idealização lírica, too good to be true.

O belo deste filme é a crueza e a sinceridade com que os temas que aborda são retratados e aprofundados. Filmado durante a pandemia, durante 19 dias, juntou dois grandes atores num quarto de hotel, duas pessoas interessantes que constroem um território de intimidade através da verdade e do respeito mútuos. Numa entrevista a Seth Thomas, em Late Night, Emma Thompson fala da ideia que temos do sexo como algo sujo e errado em vez de o respeitar como uma das forças primárias da existência. Emma também refere a obsessão doentia pelo corpo e de vidas inteiras que se desperdiçam na busca das formas ideais, em vez de nos aceitarmos como somos. Citando Francisco José Viegas, o corpo perfeito é aquele que amamos. Interessante como a verdade tantas vezes sai da boca dos escritores.