As matérias-primas pouco convencionais dos novos criadores de joalharia

Lia Gonçalves inspira-se no imaginário e no quotidiano para criar joias a partir de Viana do Castelo (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Os novos criadores da joalharia nacional exploram matérias-primas pouco convencionais: palha d'aço, celulose bacteriana, desperdícios industriais, lixo que dá à costa. Atentos à sustentabilidade, peças em constante mutação, clientes pelo Mundo. Conceitos modernos, respeito pela tradição.

Lia Gonçalves mostra um saco com peças de prata para reciclar, um frasco transparente onde mora celulose bacteriana que usa em joias, moldes de silicone que são resíduos de uma estucadora e que irá transformar em peças. Mostra ainda os primeiros esboços da próxima coleção “Novelo”, inspirada no tricô da mãe, feita com fios enrolados – terá uma edição em prata, outra em ouro. No seu ateliê, oficina, loja, espaço de workshops, no centro de Viana do Castelo, a joalheira fala das várias dimensões do seu trabalho. Alia prata reciclada a desperdícios industriais. Já usou pedra-pomes e cortiça, pensa desenvolver pasta de papel resistente com diferentes camadas e texturas. “Sou vianense, uso ouro tradicional, mas sou altamente contemporânea”, define.

A novidade espalhou-se no início do ano. Lia Gonçalves e Sílvia Araújo, designer e investigadora de Viana do Castelo, mostraram ao Mundo a coleção “Ensaio”. Brincos, anéis, pregadeiras e colares feitos com prata reciclada e celulose bacteriana, um polímero natural, biodegradável, renovável, resistente à humidade – semelhante ao papel vegetal na aparência. “É um material efémero. Ao degradar-se, a peça vai mudando”, descreve Lia Gonçalves. Joias únicas num trabalho pioneiro na joalharia nacional que alerta para a emergência climática e uso de materiais sustentáveis – até para dar textura à celulose são usados desperdícios industriais, como o pó de cortiça. Peças inspiradas em tubos de ensaio e nas pinhas que se abrem para deixar cair sementes. Lia explica o conceito ao manusear um colar com tubos que passam por um fio e que assume diversas posições. “É um colar extremamente simples, em constante mutação, que segue o movimento do corpo.” As peças de “Ensaio” estão em exposição no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa.

Criações de Lia Gonçalves
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

No seu estúdio-ateliê na Graça, em Lisboa, a joalheira Inês Telles funde elementos simples da Natureza com prata e ouro. Resultado: joias delicadas, linhas limpas, atentas ao pormenor, engenho na construção. Acaba de lançar a coleção cápsula “Partes de um todo”, três packs de brincos em prata, alguns banhados a ouro, cada um com quatro modelos distintos, formas ondulantes, para compor como se quiser. Formada em História de Arte, sempre se interessou pelo adorno nos diferentes tempos da Humanidade.

“No início do processo criativo, gosto de explorar com umas pastas que não são cerâmicas, mas são semelhantes, para criar formas”, conta. Brincos, colares, anéis, pulseiras, alfinetes, ganchos. Passou por um período mais experimental, chegou a explorar barro e sementes, centrou-se nos materiais nobres, ouro e prata, aprecia o “contraste constante” entre as duas matérias-primas, os banhos de ouro. A madeira e o ferro andam debaixo de olho. “A joalharia tem essa questão de escala”, comenta. Interessa-lhe o que é natural e manual. E nada de muito complicado à vista. “Introduzir linhas mais despojadas, brincar com a questão dos volumes e das sombras”, adianta.

Mais a norte, na loja 25 do Centro Comercial Bombarda, no Porto, Ana Pina passa os dias no Tincal Lab, o seu ateliê de joalharia, loja, montra de autores nacionais e internacionais, local de exposições, workshops com artistas convidados. Cabe ali tudo. Em novembro, haverá exposição anual com joalheiros de todo o Mundo, peças únicas, com preço máximo. Ana anda a preparar o momento e a pensar no tema que servirá de ponto de partida ao evento.

Ana Pina desenha e faz peças com linhas minimalistas e geométricas no seu ateliê-loja no Porto
(Foto Pedro Correia/Global Imagens)

Ana Pina move-se por linhas minimalistas e geométricas. Numa das gavetas do Tincal Lab, está exposta a sua coleção de bronze fundida com prata. Peças únicas e flexíveis no uso. A versatilidade é, aliás, um conceito que lhe interessa. Pendentes que podem ser anéis e vice-versa. Já usou sobras de pele, pastas de moldar com pinturas em acrílico em peças acompanhadas por pinturas feitas por si. “Misturo a prata com outros elementos, sobreposição e complementaridade”, refere. Interessa-lhe a desconstrução, a mudança de escala, o movimento. “Nos últimos anos, há mais gente a produzir joalharia de autor e a reparar que ela existe. A dificuldade é saber onde adquirir, onde comprar”, diz.

Rui Peixoto Silva é professor de Joalharia no Ar.Co – Centro de Arte & Comunicação Visual, em Lisboa, e é joalheiro. Ensina, pratica e anda a preparar o primeiro workshop “Uma joia deu à costa”, curadoria a quatro mãos com a joalheira Teresa Milheiro, para reunir interessados em recolher lixo das praias na Ericeira, Guincho, Torres Vedras, com a Brigada do Mar, e com isso criar joias, num fim de semana de maio. “O lixo não é bem lixo, há muitas coisas que se podem reaproveitar. Reaproveitar e pôr em sítios onde não é suposto”, indica.

Criações de Ana Pina
(Foto Pedro Correia/Global Imagens)

Tudo é possível, na verdade, porque a joalharia, acredita, não tem limites. Tudo o que existe pode ser transformado em joias. “Até onde as ideias podem ir.” Haja criatividade. Rui Peixoto Silva criou uma tiara de palha d’aço como orelhas de burro, anéis nascidos a partir de pó de ferro, ímanes com as suas linhas dos campos de força (aqui a sua formação em eletrotecnia veio à tona), metal sobre vidro em pregadeiras.

A inspiração, os conceitos, o design

Lia Gonçalves faz joias manualmente, a inspiração vem do imaginário, dos sonhos de criança, de querer ir à lua e ser astronauta, e do quotidiano também. Memórias do passado, experiências do presente. A imagem de tubagens num armazém dará uma coleção de peças de prata e borracha com desperdícios da indústria da eletricidade. “As tubagens amontoadas fizeram uma trama na minha cabeça que não sai”, revela. Há que dar vazão a esse devaneio criativo. “É interessante brincar com materiais recicláveis, mas o cliente que gosta de joias intemporais, que passem de geração em geração, preferirá materiais nobres, o ouro e a prata.”

A preocupação pela sustentabilidade não é de agora, é desde o primeiro minuto em que se dedicou à joalharia. Lia Gonçalves usa bicarbonato de sódio com água quente e vinagre para contornar os ácidos corrosivos utilizados na arte. Se tem mesmo de ser, pequenas quantidades e, no final, enviar para quem sabe reciclar líquidos agressivos. Economizar ao máximo.

Inês Telles não quer que a sua arte seja repetitiva. Aposta em formas orgânicas e naturais. É a Natureza que a inspira. “Acima de tudo, tem a ver com momentos. Umas vezes, são sítios, outras vezes, pessoas. É um processo um bocadinho orgânico que começa de um ponto muito pessoal. O que faço depende muito dos momentos, do que faz sentido para mim.” A sustentabilidade acaba sempre por ser uma preocupação, trabalhar com indústrias pequenas para uma escala pequena. Embalagens de produção nacional, que durem no tempo, que tentem acompanhar a duração de vida da própria joia.

Inês Telles acaba de lançar uma coleção cápsula de brincos. As suas joias estão em vários países
(Foto: Ana Brígida)

“Portugal tem uma tradição muito forte de joalharia. A joalharia mais recente está a despegar-se das práticas tradicionais, tem linhas mais modernas. Há mais gente a fazer. Tem sido um percurso interessante e feito com consistência”,destaca Inês Telles, que ainda este ano irá a uma feira em Paris e tem as suas peças à venda online, no seu ateliê, e em lojas espalhadas um pouco por todo o Mundo – Alemanha, França, Noruega, Estados Unidos, Brasil, Singapura, Suíça, Bélgica, entre outros lugares.

No final de 2020, em tempos de pandemia, Ana Pina e Telma Oliveira, ambas arquitetas com formação em joalharia, juntaram os dois estilos e criaram uma coleção de brincos com cores suaves e alegres que permite conjugar conforme os gostos, mudando as bases. São de prata com impressão 3D num polímero. Por ano, Ana Pina lança duas a três coleções, algumas peças únicas, algumas edições limitadas. A prata tem ocupado lugar de destaque nas suas criações. “Cada material tem as suas dificuldades, as suas condicionantes.” A arquitetura, sua formação de base, não sai de cena. “Acaba sempre por ser uma inspiração. É todo um universo que me inspira e que vai surgindo naturalmente no processo criativo.”

Ana Pina vende online, e no seu ateliê Tincal, e as suas peças têm sido compradas cá e noutros países, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Europa. “Há dois tipos de joalharia que, muitas vezes, se encontram. A joalharia mais industrial, reproduzida em maiores quantidades, e a joalharia de autor que ainda está um pouco agarrada à tradição do metal. Uma joalharia feita por uma pessoa, produção reduzida, um conceito diferente no design das peças.”

Criações de Inês Telles
(Foto: Ana Brígida)

Lia Gonçalves vende as suas peças em espaços físicos em todo o país e em França, Espanha, Estados Unidos, Brasil e Inglaterra. Começou na indústria, na filigrana, e depois firmou-se na joalharia de autor. Em sua opinião, há um equilíbrio interessante entre tradição e contemporaneidade, as empresas e os designers seguem os seus caminhos que, por vezes, se tocam.

Na tradição, receia que se percam peças importantes, enquanto o contemporâneo se vai adaptando às circunstâncias. “A joalharia de autor não tem estação, não tem competição de mercado, trabalha para nichos, segue o seu caminho.” Neste momento, há uma boa imagem e boas peças. “Havendo muita oferta, há muita criatividade, tudo se explora. As peças que mais vendo são as mais estranhas e arrojadas. Temos público para tudo”, acrescenta. Todavia, sente que, agora, a joalharia nacional apresenta peças bastante parecidas, semelhantes. Parece-lhe que será uma fase temporária.

Concorrentes improváveis, objetos de afeto

Usa-se tudo. Bocados de corda, pedaços de plástico, resíduos, desperdícios. Rui Peixoto Silva volta ao assunto. “Tentamos usar materiais fora do normal da joalharia clássica, que não são muito usuais na joalharia tradicional”, frisa. Até se cria o próprio material que pode surgir de todo o lado. Olha-se de outras perspetivas, conjugam-se outros pensamentos no processo criativo e de construção. E, sustenta, o que se usa no corpo é uma joia, por si só, “não é uma peça meramente de enfeite.” “É tentar criar uma peça de arte”, especifica. Com tudo o que a mão apanhe e consiga manusear e transformar.

Rui Peixoto Silva não vê limites à criação na joalharia. Tudo o que existe pode ser utilizado
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A joalharia desperta interesse. O Curso Técnico Superior Profissional de Joalharia, que resulta de uma parceria entre a ESAD – Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos e o CINDOR – Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria, em Gondomar, tem a duração de dois anos com estágio profissional. A parte mais técnica tem lugar nas oficinas do CINDOR, a vertente criativa e conceptual encaixa-se nas competências da ESAD que, no próximo ano, abrirá uma pós-graduação em joalharia.

“O setor da joalharia tem, nos últimos anos, ganhado um novo fôlego com o reposicionamento no paradigma da moda”, observa Eunice Neves, diretora do CINDOR. O interesse em novos temas tem razão de ser. “É a tradução para a prática da nova demanda de consumidores que assume novas características.” Mesmo com os concorrentes improváveis, objetos tecnológicos, viagens, experiências, a joalharia aguenta-se com procura por peças mais leves, não caras, que podem ser substituídas com facilidade e personalizadas, ou por peças únicas feitas à medida.

Criação de Rui Peixoto Silva
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

O mercado, a dinâmica, os consumidores. “A convergência de novas dinâmicas obriga a que, efetivamente, o ADN da joalharia portuguesa tenha de se adaptar a novas experiências, a um design diferente, a expectativas diferentes dos consumidores”, assinala Eunice Neves. “É um equilíbrio muito interessante entre o domínio da técnica com a introdução de design.” Daí a oferta de formação em design de joalharia, desenho criativo de joias, moda de joalharia em 3D, vitrinismo de joias.

José Luís Simão, professor na ESAD, que esteve na conceção do curso técnico superior profissional de joalharia, revela que “os estudantes que estão no mercado estão mais associados a uma dimensão mais artística de joalharia.” “Há apetência para explorar novos materiais, inovar na forma e modos de utilização.” E há outra questão da perceção que vai tendo, do que escuta, do que lê, do que vê. O consumo intenso da joalharia, muitas vezes não percetível, como objetos de afeto, como peças íntimas.