Valter Hugo Mãe

Acolhimento


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Os ucranianos merecem essa abertura, essa celeridade, o nico de alegria que lhes soubermos oferecer no meio da tragédia.

Quando escrevi “o apocalipse dos trabalhadores”, romance publicado em 2008, reagi à tremenda impressão que me fez a chegada de tantos ucranianos a Portugal. Foi-me fundamental entender que História tinha esse povo que atravessava agora a Europa inteira para se tornar tão comum num canto de pobres como é o do nosso país. Tão do outro lado da Europa, com um desafio tremendo em relação à língua, a chegada inesperada dos ucranianos teve um impacto muito peculiar no aspecto das nossas terras, desde logo nas nossas escolas, com as crianças algo introvertidas a tornarem-se em pouco tempo nas melhores alunas por toda a parte. Lembro do caso de um rapaz com quem conversei que, em dois anos de permanência em Vila do Conde, era o melhor da turma até na disciplina de Português. O que isto diz da academia ucraniana é muito. E diz também do brio de um povo que procura a robustez do conhecimento e a preparação para um mercado de trabalho que precisa de formar urgente e estavelmente.

A Ucrânia, que mantém presente o tremendismo do Holodomor, luta há gerações pela capacidade de se manter autodeterminada. Foge de uma ideia fixa de fome, que lhe acontece pela histórica asfixia que a Rússia causou, e muscula-se para a resistência. De algum modo, os ucranianos estão sempre em pé de resistência. A Rússia é invariavelmente uma vizinha prepotente, de vocação agressora, opressiva, e isso sente-se nas pequenas e grandes coisas.

Na altura, alguém me dizia que o incómodo entre uma e outra nação era como o dos portugueses com os espanhóis há mais de duzentos anos. Desconfiavam das fronteiras, da quietude das paisagens do outro lado, desconfiavam das visitas e dos casamentos entre uns e outros. Ainda que pudessem admirar os músicos e os escritores. Podiam manter algumas festas tradicionais que absorveram doces e detalhes russos. Mas sabiam bem onde começar e acabar cada sedução. Havia, acima de tudo, a convicção de sobrar sempre um perigo. Toda a memória apontava para a prudência, ou ao menos lucidez, de se contar com o pior a partir do poder ávido dos russos.

Hoje, a guerra absorve tudo. O povo que há anos nos veio escolher, encontrando na nossa franca pobreza alguma oportunidade, é novamente sujeito à fome e à morte pelo vizinho desequilibrado. Vale que agora saibamos algo sobre quem são. Sabemos bem como trabalham, como se fizeram bravos nas nossas terras, e como produziram apenas paz em nosso redor. Celebro, por isso, a decisão de António Costa de permitir imediatamente o visto a quem possa escapar para aqui. Os ucranianos merecem essa abertura, essa celeridade, o nico de alegria que lhes soubermos oferecer no meio da tragédia.

No meu romance, a mãe de Andriy, o rapaz que procura em Bragança um emprego, pede ao marido, Sasha, que lhe repita as coisas bonitas que sabe sobre Portugal. Ekaterina pede, uma e outra vez, que o Sasha diga que os portugueses são bons e que farão o melhor pelo filho. Amarão o filho, até que ele possa voltar a Korosten saudável e salvo por um salário digno, poupado por anos de profundo esforço. O que esta mãe precisava de Portugal é o que hoje devemos querer ser: um país de confiança, onde alguém que busque sobreviver encontre simplesmente lealdade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)