Valter Hugo Mãe

Abortar


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Nenhuma pessoa de espírito minimamemte saudável pensa em interromper uma gravidez com ligeireza e nenhum de nós, sobretudo os homens, pode calcular o que sobra no sentimento de uma mulher que abortou.

Nos últimos meses, talvez por haver acusado uma nova exaustão, tenho procurado focar em pessoalíssimas vulnerabilidades, paixões ou ansiedades, ao invés de escutar o mundo, essa vasta evidência de atrocidade que nos cansa a todos, que nos procura vencer, que nos esgota no tão ínfimo tempo de vida, tão breve oportunidade de bem-estar e alegria. Hoje, contudo, não posso deixar de protestar também pelo ascoroso exemplo norte-americano no recuo histórico perante o aborto legal. Junto ao grotesco de um caso brasileiro, o desânimo e a raiva crescem diante da hipócrita cantilena do costume justificando tudo pela tão bela protecção à vida.

Impedir o aborto legal nas primeiras semanas de gestação não é mais do que persistir na opressão sobre o corpo da mulher. Não se trata da criança, porque assim que ela nasça ninguém quer saber. Trata-se simplesmente de continuar a subjugar a mulher ao poder machista e a conferir ao homem, mesmo que estuprador, o direito inabalável de ter seu filho. Sabemos todos o que acontece com a ilegalização do aborto, voltarão as mulheres ao aborto clandestino, correndo todos os riscos, sujeitas a todas as violências, discriminando as mais pobres, as mais vulneráveis, que não terão como garantir que se entregam a profissionais competentes, tantas vezes viajando para o estrangeiro, para países menos retrógrados ou menos misóginos.

Já havíamos passado por esta luta. Isto já era ciência clara e sem sobressalto senão para espíritos torpes. Já toda a gente sabe que quem for contra o aborto não deve praticá-lo, quem for contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo não deve casar com alguém do mesmo sexo, se você for alérgico às amêndoas, então não coma amêndoas. Mas não pode impor aquilo que escolhe aos outros, porque limitar direitos fundamentais dos outros não pode ser o sentido do seu direito.

Pressupor que as mulheres abortam de ânimo leve, só porque sim, é passar-lhes um insuportável atestado de estupidez. Nenhuma pessoa de espírito minimamemte saudável pensa em interromper uma gravidez com ligeireza e nenhum de nós, sobretudo os homens, pode calcular o que sobra no sentimento de uma mulher que abortou. É, por isso, inaceitável que se retire este assunto ao império das mulheres, levando-o a ser decidido por uma multidão de homens prepotentes e inquinados por séculos de subjugação de esposas e filhas a quem conferiram apenas o direito à obediência e infelicidade.

Falei mil vezes acerca da vontade que teria de ser pai. O aborto nunca estaria nos planos da minha própria vida. Mas isso jamais me levará a julgar que os outros devem encarar os meus como os seus sonhos. Porque é muito certo sermos todos tão distintos que um mínimo detalhe pode impossibilitar qualquer benignidade num mesmo gesto perante duas pessoas diferentes.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)