Valter Hugo Mãe

A terra que treme


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Acompanho agora a desoladora situação da nossa ilha de São Jorge e não sei imaginar o que fará ao coração de quem sai. Deixam suas casas como túmulos vazios onde cada coisa está ainda convencida de que todos chegarão mais tarde.

Julgo que todos temos um pouco o inconfessável medo de que o Planeta se desfaça, que se parta em metades e derive de sua sobrevivente rota para a morte inteira. Habitamos uma camada fina de chão sobre caves gigantes, buracos sem-fim onde cozinham gazes e lumes eternamente. Somos na pele de um ovo cuja gema parece criar a demorada e absoluta fénix. Se é verdade que nos habituamos a estar aqui, não é menos verdade que vivemos no cimo da fogueira, na casca da rebentação, somos uma oportunidade toda improvável.

Quando a terra treme regressam as histórias acerca dos medos e dos exemplos das grandes tragédias. E regressam as deslocações, essa espécie de fuga da boca da fera, em busca do dorso ainda quieto onde a besta se mantenha adormecida.

Estive algumas vezes à experiência de sismos. Na Islândia e no Japão ouvi das pessoas o susto expectante que imaginava pegar em tudo e correr. No Sul da Islândia, por exemplo, algumas casas são encostadas à montanha do próprio vulcão, abrigadas do vento. Explicam as pessoas que foram erguidas várias vezes e várias vezes deitadas a baixo. Os seus habitantes regressam como se importasse sobretudo estarem cerca de seus mortos, de suas memórias, do canto sempre mais soterrado onde pisaram.

Em Tóquio, os edifícios altíssimos são erguidos em borrachas, e as estruturas de ferro são lassas para poderem ceder quando a terra estremece. No sismo, os prédios estalam como se houvesse relâmpagos por suas tripas, os fossos dos elevadores ressoam esse ruído inacreditável e a vibração é intensa. Custa crer que nada se parte. Estar no vigésimo oitavo andar, sentir uma inclinação súbita e ouvir depois uma espécie de Torre Eiffel a rachar haverá de ser uma das mais inusitadas sensações da minha vida. Que o Mundo não tenha acabado, ao menos para nós ali metidos, é um milagre da ciência que haverei sempre de louvar.

Acompanho agora a desoladora situação da nossa ilha de São Jorge e não sei imaginar o que fará ao coração de quem sai. Deixam suas casas como túmulos vazios onde cada coisa está ainda convencida de que todos chegarão mais tarde. Mas a ilha pode querer diferente. Os territórios vulcânicos em acção são ainda imaturos geologicamente. Inventam ainda seus corpos, definem pelos séculos o que haverão de ser. A ilha não pode prometer nada. Quem sai de Velas, por exemplo, pode estar a despedir-se de um lugar que os mapas futuros não dirão ser ocupado. Como se o povo de ali fosse extinto à força, afastado para lembrar mas impedido de se exercer. É como ver a morte sem que morramos de verdade. E é medir a justificação da vida perante o perigo que ela carrega. Dias tristes. Tremendos e tristes. Espero que a fera se acalme e a ilha salve seus próprios povos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)