A força do hábito

A plasticidade cerebral é, no fundo, a capacidade de o órgão se reorganizar para aprender novas competências

Para muitos palavra maldita, a rotina tem benefícios importantes ao nível da sensação de segurança e da gestão do esforço mental no dia a dia. Mas atenção: o cérebro também pode ficar preguiçoso.

O mês de setembro a arrancar, as férias já no retrovisor, a doce sensação de relaxamento a fugir aos poucos, o peso da rotina a voltar em força para nos modelar os dias. Hora para acordar, hora para almoçar, para jantar, para os banhos dos miúdos e para os sonos, treinos à terça e à quinta, música à quarta, uma agenda farta. Mas será assim tão mau? Olhe que não. A rotina, essa palavra que tendemos a ver como maldita, tem a sua importância e, mais do que isso, os seus benefícios. Desde logo o facto de nos permitir poupar o cérebro a doses de trabalho incessantes e insuportáveis. Joana Ferraz, neuropsicóloga, explica porque é que andarmos em piloto automático, em determinados momentos e tarefas da nossa vida, pode ser benéfico e produtivo. “O nosso cérebro funciona por padrões e por previsibilidade. Daí que a rotina seja protetora. Graças a ela, há determinadas tarefas que não exigem um esforço mental tão grande e acabamos por estar mais libertos para outras coisas. E por ter uma dada estabilidade emocional que nos permite estar disponíveis para novos desafios e para sermos mais criativos noutras áreas.”

Basta pensarmos no caso dos bebés. “Quando têm demasiada informação nova, chegam ao fim do dia extremamente irritados”, assinala a especialista. Connosco passa-se algo semelhante, ainda que necessariamente numa escala menor: se for tudo novo, estamos constantemente a ser bombardeados com informações novas e, a dado ponto, isso tornar-se-á difícil de gerir. De resto, a rotina assume particular importância nesta fase, dado que as férias têm esse condão de soltar as amarras dos hábitos do ano inteiro (o que também é importante, mas lá iremos). Ainda mais se houver filhos pequenos na equação. “Quando voltamos das férias, se não tivermos algum cuidado para tornar a instalar as rotinas antigas, o regresso pode ser penoso. O ideal é retomar hábitos alguns dias antes. Isto é particularmente importante em termos de hábitos de sono, sobretudo nas crianças.”

Renato Paiva, pedagogo e diretor da Clínica da Educação, também enfatiza este ponto. “As rotinas ajudam-nos a estruturar e a organizar aquilo que tem a ver com a nossa interação com o meio, dão-nos segurança a respeito daquilo que aí vem. Não há um desconhecido. E isso é particularmente relevante no caso das crianças. Não é por acaso que nos perguntam com frequência onde é que vamos a seguir, se ainda falta muito. São respostas emocionalmente tranquilizadoras para se conseguirem organizar no tempo e no espaço. E para perceberem que estarem a fazer uma coisa qualquer não inviabiliza que estejam a fazer algo completamente diferente depois. É uma questão de segurança emocional.” E isto pode aplicar-se tanto aos hábitos mais básicos, como os de higiene e do sono, como às próprias rotinas escolares. “É importante interiorizar, por exemplo, que o dia de aulas à segunda-feira é diferente do de quarta-feira. Isso permite-lhes organizarem-se antecipadamente, de forma a sentirem mais segurança. Tudo o que tem a ver com imprevisibilidade leva-nos a estar num estado de alerta mais significativo.”

A questão da plasticidade cerebral

Mas nem tudo são benefícios. E nem sequer estamos a falar do enfado que vem com a rotina. Em causa, está a questão da plasticidade cerebral. Joana Ferraz traduz: “É uma questão de reorganização dos circuitos neurais. Há um preconceito de que cada área do cérebro é responsável por uma determinada função, mas a verdade é que o cérebro funciona muito em rede”. A plasticidade cerebral é, no fundo, a capacidade de o órgão se reorganizar para aprender novas competências. “E se estivermos demasiado presos na rotina essa plasticidade cerebral é afetada, o cérebro acaba por ficar demasiado preguiçoso. A rotina tem esta dupla face. Por um lado, ajuda-nos a libertar espaço para fazer coisas novas. Por outro, quando é em demasia, faz com que fiquemos menos recetivos à mudança e à aprendizagem.”