Porque compramos tanta coisa inútil?

"Apaixono-me pelas coisas. Vejo e sinto que tenho de ter aquilo. E, como posso, compro", admite Tânia Ribeiro

No supermercado, em lojas online, em centros comerciais, todos nós, de alguma maneira, já fizemos compras por impulso. O ato de compra em si próprio tornou-se num ato de prazer, muito para lá da utilidade do produto.

Se Tânia Ribeiro tiver de olhar para trás e pensar na sua compra por impulso mais absurda, é fácil: “Um carro. Apaixonei-me por um Mini Cooper, uma edição especial dos 50 anos da Mini e troquei de carro. Andei uns meses com ele e tive de o vender porque era duro, fazia-me doer a anca. Eu faço destas coisas.” Tem 37 anos, é assistente técnica na Câmara Municipal de Matosinhos e assume: “Sou um bocado exagerada nas compras. Compro mesmo muita coisa de que não preciso”.

Tânia não é caso único, longe disso. Já todos fizemos compras inúteis. Mas, afinal, por que motivo compramos tanta coisa de que não precisamos? “A questão é muito desafiante. Os seres humanos estão muito focados na compra, há uma tendência para o consumismo”, sustenta Rui Gomes, professor de Psicologia do Consumidor na Universidade do Minho, que rebobina a cassete do tempo para desmontar o fenómeno.

A Revolução Industrial, defende, trouxe a reboque o efeito do consumismo, ao permitir o acesso a muita coisa. “Os modelos económicos são importantes para compreendermos essa tendência. A indústria sofisticou-se, temos ciclos produtivos muito curtos. E a consequência foi estimular no consumidor uma necessidade de ter sempre os produtos mais atuais.” É tão simples como fazermos o exercício de pensar nos nossos avós, “para quem o ato da compra tinha na sua génese uma razão instrumental, uma finalidade”. Já não é assim. “Mudamos para uma motivação de recreação. O ato de compra em si próprio tornou-se no ato de prazer e autossatisfação.”

Talvez isso explique a vontade quase incontrolável de Tânia em comprar. Roupa, mobiliário, acessórios. “Compro porque acho engraçado e depois canso-me e vou doar as coisas praticamente novas a amigos e familiares para comprar novo.” Tem consciência de que é a disponibilidade financeira que a faz não ter grande travão. “Apaixono-me pelas coisas. Vejo e sinto que tenho de ter aquilo. E, como posso, compro.” Tanto se perde em lojas físicas, como online. E reconhece que sempre foi assim. “Acho que tem a ver com um certo facilitismo que fui tendo na minha adolescência. Os meus pais sempre me deram mais do que deviam. E habituei-me desde cedo a ter aquilo que queria. Já tive situações financeiras menos boas e tive de conter mais esta minha impulsividade. Mas podendo, e tendo capacidade financeira, não me inibo de comprar aquilo de que gosto.”

De massajadores de madeira a uma fritadeira sem óleo que está guardada nos arrumos da casa desde que saiu da loja, Tânia perde a conta às coisas que já comprou e que nunca usou. Todos os anos, por duas vezes, faz arrumações no armário para dar roupa, a maior perdição. Mas não perde o controlo. “Nunca ultrapasso o meu budget. Até porque tenho um filho. E com ele sou um bocado assim também, esbanjo muito.” Até é capaz de andar a namorar coisas durante algum tempo, de não se permitir a comprar logo, de lutar contra o ímpeto, mas raramente resiste à tentação. “Sei que não preciso, mas é tão giro e aquilo não me sai da cabeça. Vou ver uma, duas vezes, e acabo sempre por comprar.”

A satisfação emocional

Beatriz Casais, especialista em marketing, considera que tudo o que compramos tem uma utilidade, mesmo que não seja a funcionalidade. “Por exemplo, num dia mais aborrecido vamos ao centro comercial fazer uma tarde de compras. As compras em si podem não ter o objetivo da funcionalidade do produto, mas a satisfação emocional do ato da compra, uma necessidade de compensação.” A autoestima também entra na equação, como quando compramos mais um par de sapatos. “Até podemos não precisar efetivamente, mas compramos porque nos vão fortalecer a autoestima, é uma necessidade de reconhecimento social, de mostrar que seguimos as tendências.” E podemos até ir mais longe, aos souvenirs que trazemos das viagens. “Não vamos usar aquele porta-chaves nem aquela t-shirt, compramos para trazer uma recordação que nos vai fazer lembrar aquela cidade.”

Uma coisa é certa, compramos cada vez mais para satisfação pessoal, muito mais do que pelo uso que vamos dar. E o experimentar a novidade também se atravessa neste caminho. Aliás, há consumidores que não resistem ao que chega de novo às prateleiras das lojas. São designados de “early adopters”. “Gostam de ser sempre os primeiros a comprar. Sobretudo gadgets. Compram pela necessidade individual de experimentar e de serem reconhecidos pelos outros como alguém que pode falar da novidade”, resume a especialista em marketing.

Consumidores mais suscetíveis

E haverá consumidores mais suscetíveis do que outros? A resposta é sim. “Há mais compras impulsivas em pessoas mais vulneráveis, mais influenciadas por impulsos de marketing”, aponta Beatriz Casais. O professor de psicologia, Rui Gomes, concorda. Afinal, a personalidade faz parte da engrenagem da compra. E se há quem não olhe para o consumismo como parte da sua forma de ser, também existe o oposto. “Há pessoas que resistem muito bem, que têm uma noção clara do que precisam e tipicamente seguem esse guião. E há quem tenha maior dificuldade em controlar o impulso e em tolerar a frustração.” Mais: a impulsividade para o ato da compra é independente do estatuto socioeconómico, da idade e do género.

Inequívoco é que todos nós, de alguma maneira, fazemos compras impulsivas. “Porque a sociedade é, de facto, uma máquina muito oleada e voltada para o consumismo.” Basta ver que as marcas nos convencem de que são suficientemente diferentes entre elas. “Há pessoas que só usam computadores de uma determinada marca. É uma questão de identificação, já não é uma questão de necessidade. Ou, por exemplo, se olharmos para um grupo de motards que só compram uma certa marca, já nem se trata da marca em si, trata-se da afiliação, de pertencer a um grupo.”

A máquina do marketing

Como diz Rui Gomes, “já não basta um cliente satisfeito, é preciso um cliente continuamente insatisfeito”. É aqui que o marketing entra, a motivar as compras por impulso. Beatriz Casais explica-o bem. “O marketing não vende apenas o produto, vende a necessidade do produto. Se olharmos para o exemplo dos sapatos, o marketing não vende só a necessidade de calçar, vende a autoestima, o estar na moda, o estatuto.”

O fenómeno das televendas, mergulhadas num mundo de marketing que nos mostra mil e uma funcionalidades num só produto e a repetição da mensagem até à exaustão, também revela bem isto. “Nós acreditamos mesmo nas múltiplas funcionalidades do produto e que é uma oportunidade. Até podemos não as usar no nosso dia a dia, mas compramos porque vemos utilidade.” Se pensarmos nos robôs de cozinha, “acabamos por usar só uma ou duas das dez funções, porque a nossa rotina não é assim tão diversificada”.

E o marketing está por todo o lado. Até quando vamos ao supermercado com uma lista e acabamos a trazer uma série de outras coisas que se esbarram no caminho. Há uma razão simples. “Tem a ver com a forma como os locais de venda estão organizados, que estimulam imenso o ato de compra incontrolado. A carne, o peixe, os produtos essenciais estão sempre mais distantes, para nos fazer percorrer todos aqueles corredores e sermos bombardeados com imensos estímulos”, assinala Rui Gomes. A juntar a isto, entram as promoções, “o preço exclusivo e inigualável que torna muito difícil resistirmos”.

Levar um guião bem definido do que pretendemos pode ajudar. Mas nem sempre nos trava. “Porque nos sentimos bem dentro dos espaços comerciais, as marcas investem muito dinheiro a decorar os lugares, em estímulos sensoriais. Os centros comerciais são overdoses de comportamentos de compra”, justifica o psicólogo.

Lojas online: clicar e comprar

Então e as lojas online? Se há pessoas que não resistem às montras físicas, outras há que compram a toda a hora em grandes sites como a Amazon. “As lojas online têm um fator extraordinário na venda. Reduziram o fosso entre aquilo que quero e o ato de compra”, realça Rui Gomes. Na verdade, quando as lojas eram todas físicas, entre a necessidade de um determinado produto e a compra podiam passar minutos, horas, dias. O que nos dava tempo para pensar e repensar a compra. “Agora, achamos que precisamos de qualquer coisa e o produto está ali. Entre o desejo e o clique são segundos.”

Voltando a Tânia Ribeiro, para ela é fácil admitir que compra muita coisa desnecessária. Mas nem todos os consumidores o percebem e reconhecem. Dá um exemplo: “Vou a uma loja e vejo uma camisola de que gosto. Se estiver indecisa, não me limito a comprar só uma, compro logo em todas as cores.” O professor de Psicologia do Consumo, Rui Gomes, resume: “A posse do produto passou a ser uma fonte de realização tal como a pertença a uma comunidade, o valor da família, da amizade, do conhecimento”.

“Apaixono-me pelas coisas. Vejo e sinto que tenho de ter aquilo. E, como posso, compro”, admite Tânia Ribeiro