Polícia escondido com gato de fora
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Foi uma aula de vigilância policial, o que se pode e não pode fazer. Depois, o que se pode dizer. No banco dos réus estava um rapazito negro que não conseguia lembrar-se do nome completo dos pais, de tão atrapalhado. Tráfico de droga de menor gravidade. Não quis falar sobre isso. Entrou uma jovem.
– Tem alguma coisa contra, ou a favor, é parente, é amiga, é inimiga do arguido?
– Sou a mãe.
– É a mãe?!, exclamou a juíza.
– É um elogio, disse-lhe o advogado de defesa.
– Minha nossa, eu ia dizer que era irmã!
A mãe também não quis falar e, sim, parecia irmã do réu.
Assim, para haver alguém que falasse sobre o caso, restava o polícia que prendeu o rapaz. Um quarentão também vestido à jovem que faz “vigilância e detenções desde 2009”.
– Ao passarmos no Bairro da Serafina, visualizámos o indivíduo junto ao café. Baixou a cabeça, mas acompanhou-nos a ver para onde nos deslocávamos.
Na segunda passagem, ao meio-dia, achou estranho ainda lá estar porque não o conhecia. O colega do polícia também não.
– A pessoa não é do bairro. Visualizei duas cenas de venda directa. À terceira vez, decidimos fazer a abordagem. Decidimos fazer uma revista no local onde se encontrava.
No chão, à sua frente, debaixo de um bloco, encontraram um maço de tabaco com tirazinhas de haxixe. O jovem tinha 40 euros no bolso. Este é o resumo. Mas como é que se faz, de um ponto de vista policial? Com o que se pode e como se pode.
– Nós trabalhamos à civil e numa viatura descaracterizada… apesar de todas pessoas nos conhecerem… até o carro conhecem, apesar de ser descaracterizado…
O jovem estava numa cadeira, à porta de um café.
– Era o café do Fábio, que já não é, porque ele foi preso noutra operação… Passei às nove horas da manhã e depois por volta do meio-dia. Não é normal uma pessoa estar tanto tempo sentada no mesmo sítio. Não faz sentido, se vai ver um amigo, não faz sentido estar horas sentado à frente do café.
E o que viu o polícia?
– Vi a entrega do dinheiro pelo cliente. O arguido desloca-se quatro, cinco metros à frente e retira o produto do solo. A nota que ele recebeu era azul, presumo que de 20 euros. Levava as mãos baixas. Quando não há ninguém ali, é normal baixarem a guarda e tomarem menos cuidados. Quando há pessoas, é normal tomarem mais precauções.
Agora, a questão quente. Um polícia que toda a gente conhece chega num carro que toda a gente conhece. Onde vai ele vigiar?
– Eu, no local onde estava, tinha de tomar alguns cuidados. Temos de ter cuidado porque há ali pessoas que nos ajudam e não podemos pôr em risco a segurança dos que nos ajudam.
– Queria perceber em que local estava, que local é esse, começou o advogado do jovem.
O polícia dizia-lhe que não com a cabeça.
– Posso dizer que estava a 30 metros em linha recta.
Mas o advogado queria pormenores. Onde estava o polícia. E também eu pensava: postigo, telhado, janelinha, atrás de um arbusto? Havia um esquema do local, presente no processo.
– Mas em que local?
– Eu vou dizer, suspirou a juíza, o senhor doutor quer saber qual era a vizinha, ou o vizinho, que o estava a ajudar.
– Não posso dizer. Posso dizer que estava numa zona mais elevada. Aqui é o café do Fábio, aqui é a cadeira, e aqui está em linha recta…
– Existe alguma explicação para não haver uma fotografia?, perguntou o advogado.
– Sim! É evidente que se eu tirasse uma fotografia daqui para ali, bastava ir ao local… e ia denunciar pessoas que já me deram muito jeito, e continuam a dar muito jeito, mostrando de onde tirei a fotografia.
E foi nesta “falta de prova inequívoca”, que o polícia nunca iria fornecer, que o advogado pediu a absolvição “in dubio pro reo”.
Já agora, a matrícula da “viatura descaracterizada que toda a gente conhece no bairro” começa por AG. Foi o guarda que disse que toda a gente sabe que começa por AG a matrícula, não queremos boicotar (ou denunciar) ninguém.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)