O estranho caso dos trigémeos
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Um mal nunca vem só, e nem esse segundo mal é suficiente – não há duas sem três. Mas estou a fazer futurismo com a sina, o destino, de uma família só porque eles são trigémeos e lá têm o seu feitio. Um tripé de bebés em carreirinha na mesma maca, num desauspicioso dia de 1983, na maternal, mas corriqueira, freguesia de São Sebastião da Pedreira.
– Tem filhos?, perguntou a juíza.
– Tenho um, graças a Deus. Vai fazer cinco anos em Dezembro. Apesar do que aí vem escrito, o meu filho sempre viveu comigo.
O que vem ali escrito foi dito por ele e não é bonito. O homem entrou na sala de máscara azul pandémica, mas numa camisa cor de laranja tão faiscante que parecia a metade de um macacão de assassino algemado em filme americano. Deve vestir macacão azul no trabalho, é mecânico de automóveis. O homem disse logo, por entre a máscara e sob a espessa testa e o cabelo escuro:
– Eu posso falar!
Acusado de violência doméstica, queria esclarecer que disse umas coisas e outas não, eram invenção da ex-mulher, mãe do filho.
– Agressões físicas não cometi. Eu só lhe respondia.
Começou então a peneirar o que lhe dizia respeito. Mesmo não tendo batido na ex-mulher, não foi bonito. Preparai-vos, leitores que tendes ouvidos e cérebro e, por assim dizer, moral.
– O meu filho era o primeiro a entrar na creche e o último a sair, às seis. Eu chegava a casa do trabalho às oito e ele sempre a chorar atrás da porta, sem banho e sem jantar.
Então, a procuradora começou a enunciar as conversas em casa:
– Disse ou não disse à sua mulher: “Tu queres é mamar na picha, és uma maluca, uma descompensada, vais ficar sem o nosso filho, vais ficar sem casa, vais ficar sem nada, metes-me nojo e desaparece”? Ou então: “Já tenho outra pessoa para me mamar na picha e é mais nova do que tu”. E ainda: “És uma puta, pior do que as putas da rua, as mulheres com quem te traí eram melhores, metes-me nojo, tenho desgosto que sejas mãe do meu filho, dou-te um borracho”. Isto foi resposta a quê, senhor Alberto?
– Vou ser muito sincero. Houve coisas aí que disse, e há outras coisas que é mentira. Alguma resposta aí é porque eu chegava a casa e ela dizia que eu cheirava mal, que só ‘tava bem era a fazer vida com as putas da rua.
– Chamou-lhe puta ou não?
– Não, não, eu disse que “putas devem ser é as tuas amigas”.
– “Não vales nada.”
– Isso disse. Porque ela me dizia sempre que eu não valia nada, que era um nojento, que era um porco.
– E “tu queres é mamar na picha”?, continuava a procuradora.
– Isso é mentira.
A sala escurecia de palavras sujas.
– “Vais ficar sem casa e sem o nosso filho”, disse ou não?
– Ela nunca podia ficar sem casa, porque a casa era dos dois.
– “Metes-me nojo e desaparece.”
– Isso disse.
Alberto contou que vivera em Angola com a mulher, emigrados. A procuradora levantou as sobrancelhas, a juíza fez o mesmo.
– Peço desculpa… este senhor não é aquele que esteve cá há muito pouco tempo e que esteve casado com uma rapariga também de Angola com quem…?
– Não, não, interrompeu o homem, é meu irmão.
– É irmão!, gritou o advogado de defesa.
– Seu irmão?
– É irmão gémeo, somos trigémeos! Três gémeos… vitelinos.
– E também foi para Angola…, suspirou a juíza.
– Não, não esse foi para Moçambique.
O segundo gémeo emigrou para o mesmo continente e fazia o mesmo à mulher (de Angola à contracosta…) Iguais, de corpos morenos e compactos, fruto do mesmo zigoto. Já o terceiro, nascendo ao mesmo tempo, era alto, ruivo e magro. No fim, a ex-mulher não quis falar porque já se divorciou e fala com ele “cordatamente”. Decidiu não complicar a vida e crescimento do filho, e a procuradora, sem provas, pediu a absolvição de Alberto.
Ao saírem, disse “ai são tão iguais” e a juíza desafiou o advogado:
– Quando vier cá com o terceiro, já sabe o que dizer…
– Sotora, eu, se tiver de vir com o outro trigémeo, há-de ser por outro assunto. E bem mais grave!
Ó vidas triplas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)