Valter Hugo Mãe

Germano Silva


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Completou agora 90 anos de idade, juro que vi o granito dobrar-se para que as casas se dobrassem também numa vénia à sua passagem.

É pelas gentes que as cidades cumprem suas funções cardíacas, nas gentes estendem seus meticulosos pulmões. Por mais que se ergam de pedra, de intenções eternas ou até quietas perante a bonança ou a tempestade, as cidades sabem que são sobretudo seu corpo humano que conhece e sonha. Contudo, alguns de entre nós são os 28 gramas da alma, o peso do infinito sentimento, a presença do sentido profundo de um lugar. O Germano Silva é esse Porto, um que está como estrutura essencial da comunidade, memória e celebração límpida de quem fomos, de quem somos. Completou agora 90 anos de idade, juro que vi o granito dobrar-se para que as casas se dobrassem também numa vénia à sua passagem. O Porto está de festa grata pelo seu belíssimo aniversário. Não se vêem as gambiarras, os carrinhos das farturas ou os balões, mas andamos todos na rua com certo fogo-de-artifício ao peito, um alarido nos corações que chega a ouvir-se de um passeio ao outro.

Tenho para mim que quem lembra cuida. Não cuidamos daquilo que esquecemos, daquilo a que deixamos de atribuir significado. Perdemos tantas vezes a ternura dos lugares e dos objectos, ficamos indiferentes a tantos documentos como se as pessoas que eles implicam morressem definitivamente, para sempre, incapazes de nos comunicarem através do tempo. E tenho para mim que quem lembra nos salva, aos mortos e aos vivos, de nos tornarmos absolutamente ninguém, nada. Leio os livros do Mestre Germano Silva e em todas as páginas há uma salvação. Cada detalhe aponta para o encontro de quem foi com quem é, como se ninguém prescrevesse jamais, ninguém se fosse embora jamais. Gosto que exista sempre uma pista dessa gente que nos precedeu e que sonhou na mesma vista da Sé, diante dos mesmos azulejos da Igreja do Carmo. Somos irmanados pela força perene da vista ou dos azulejos, somos familiares pela força de sonhar no mesmo lugar. Isso é uma cumplicidade, uma pertença.

De algum modo, pertencemos uns aos outros por causa de Germano Silva. É ele um elemento fundente, um promotor incansável do encontro e da identificação. É ele um explicitador do parentesco, igual a ser a própria razão do parentesco.

Apresentou-se um novo livro de Germano Silva no auditório repleto da BMAG com tanto do que falta porque falta sempre mais alguma coisa, e contaram-se mil histórias do Porto e de como saber do Porto. Como se aprende tudo a ler, e como se lê para melhorar. Lembrou-se a sua afirmação retumbante, a de que vale a pena saber do passado para melhorar o futuro. De certo modo, é o que faz a cada dia, melhora o futuro. Não será já uma surpresa que a arma para isso está na História. Os que viveram deixam pistas de como humanizar nossos gestos, como estar aqui na gentileza mais equilibrada da vida. Como fazer valer a pena estar aqui.

Que bom haver os 90 anos de Germano Silva. Que urgente ouvir o que diz, ler o que escreve, dar-lhe o maior abraço.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)