Valter Hugo Mãe

A Morte de Francisco Trabulo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A obra de Trabulo, exposta inúmeras vezes, falta nas casas maiores da arte, falta evidente, fremente no mais alto lugar como intrinsecamente é.

Andava há uns tempos a catar pistas para a pessoa de Francisco Trabulo, o magnífico pintor. Nunca tive consciência de ter estado com ele, embora me digam que coincidimos em inaugurações e outros eventos, como pessoas que se perdem na multidão. Há uns poucos anos, estava nas paredes do atelier de Henrique do Vale um desenho de Trabulo sobre o qual debatemos. É o impiedoso das suas imagens, a mutilação ou o suicídio que mais apelavam ao fascínio e ao horror de quem vê, e observar a sua belíssima obra coloca-nos imediatamente a questão de saber com que peças haveríamos de conviver e com que peças nos sentiríamos sucumbir. Sucumbir diante de uma obra de arte, de todo o modo, a mim parece fascinante.

Por uns tempos perguntei por Francisco Trabulo aos artistas amigos e senti que ele me escapava como água por entre os dedos. Podia ter a impressão de nos perdermos por ínfimos segundos, na azáfama do Porto ou na paisagem mais interior de Viana do Castelo, quando por ali ando a sonhar com ter casas de montanha, à distância, para inventar noites vivas, longas, de palavra e desenho.

Estive para o convidar para uma ideia peculiar, mas senti vergonha. O desencontro tornara-se meio inevitável e eu não considerei respeitoso procurá-lo com os meus interesses e meu encanto. Julguei mais decente esperar, porque ele era tão jovem ainda e haveria de ter mil oportunidades para lhe dizer de como gosto do escuro nas suas imagens, os corpos à espreita, o frio. Ter vergonha de cumprimentar quem admiramos é uma porcaria porque nossas afeições profundas, genuínas, limpam o gesto e tornam-no legítimo e bom. É bom que gostemos de verdade da obra de alguém e que essa atenção possa derramar por sobre o autor uma simples celebração.

Francisco Trabulo morreu esta semana, aos 64 anos de idade, e eu sinto que não se fez alarde bastante da sua vida nem do seu trabalho. Somos um país pequeno com dificuldade de deitar os olhos por sobre seu tamanho. O país é pequeno sobretudo por ser tão estreito o reconhecimento de suas próprias maravilhas, de sua própria identidade. Como um cristal que não toma conhecimento da completude das refracções. A obra de Trabulo, exposta inúmeras vezes, falta nas casas maiores da arte, falta evidente, fremente no mais alto lugar como intrinsecamente é.

Havia duas telas grandes nas paredes da Cooperativa Árvore há uns largos meses. Saíamos da loja e deparávamo-nos com a imagem inesquecível. Lembro-me de baixar a cabeça como se começasse a passar por debaixo de alguma coisa. Estava debaixo do quadro. Não podia sentir-me inteiramente de pé. Era demasiado. Maravilhoso demasiado para que o corpo não se protegesse imediatamente.

Que importante seria, agora, uma retrospectiva gigante do seu trabalho. Igual a convocar-lhe o corpo possível, para que não corra o risco insuportável de se esquecer nesta opacidade tão grande que é a da arte em Portugal.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)