O número de mortos por sobredosagem de drogas é o mais alto dos últimos cinco anos - a cada 28 horas morre um português drogado. O crescimento consecutivo alarma: há mais casos com heroína e cocaína, as drogas são cada mais fortes. Três utilizadores de substâncias psicoativas ilícitas viveram na lâmina do abismo e voltaram vivos.
Rui nunca mais esqueceu, tinha 28 anos, era o ano 2000, era o fim da tarde, a noite decaía amansada e a linha da colina atrás da casa dele, um dorso verde onde há sobreiros, pinheiros pequenos, um enorme eucalipto e acácias australianas a que chamamos mimosas, esbraseava, prolongando-se pelo enorme céu acima em azul degradê a escurecer. Estava com mais cinco ou seis, entre eles o Sapatas, estavam todos agitados, a tirar coisas e risos dos bolsos, Rui agachou-se de cócoras e começou a preparar. Quase sentado no chão partido, as costas contra a parede do prédio de tijolo, mesmo debaixo da letra e dos números B13, e concentra-se no caldo como os outros, a excitação a crescer.
É um ritual habitual – uma tampinha em forma de colher, enche-a a mais de meio de água destilada, junta as gotas do limão que passou de mão em mão e dissolve naquilo dois tipos de pó que tira de dois saquinhos. Um é branco acastanhado, granuloso, outro é pó branco muito níveo, muito fino, que ele deita cheio de meticuloso cuidado, como um cozinheiro zeloso a temperar. A segurar a sopinha na tampinha pela aba, acende um isqueiro, chega-lhe a chama lentamente por baixo e o líquido começa a ebulir, em bolhinhas e espumas, até o pó se dissolver na solução.
Está quase. Rui tira do bolso uma seringa, já pousara o caldo cuidadosamente no chão, retira o protetor da agulha com os dentes, mergulha no líquido a ponta do bisel, e depois puxa o êmbolo todo atrás até encher o tambor da seringa.
Foi o primeiro dos cinco ou seis a aprontar-se, os outros ainda estão a caldar, mas o Rui perde um tempo infinito a procurar uma veia, primeiro um braço, depois outro, um minuto, dois, três, continua a flexionar, mas nada. Impacienta-se, põe-se de pé e passa a agulha ao Sapatas, os olhos muito abertos. Retesa o pescoço, levanta o queixo, vira a cara para ele de viés, o Sapatas apalpa-lhe a pele, acha uma veia boa e enfia na carne a ponta do ponteiro, o êmbolo calmamente pressionado, ele a sorrir, todo até ao fim.
O que aconteceu a seguir foi confuso e aconteceu muito depressa. Rui lembra-se de perder as pernas, todo bambo, de ver os braços pesados a cair, do queixo bater rotundamente no peito e de todo ele desabar, docemente despenhado, olhos fechados, e desmaiar. Não fosse agarrado pelo Sapatas e caía redondo no chão. Não fosse o que continuará a contar e poderia ter sido outro o desfecho, um fim traduzido pela frieza das estatísticas. A cada 28 horas um português morre devido ao uso de drogas, dizem os últimos números. Foram 307 em 2018, e uma subida alarmante de casos com heroína e cocaína.
Rui estava sentado no cimento frio quando acordou, encostado à parede torto, e não percebia o que se estava a passar. Via cinco ou seis caras sobre ele, caras longas, alteradas, arregaladas, e ouvia muito longe, e depois alto, a chamar pelo seu nome e o Sapatas a dar-lhe chapadas. “Acordei à chapada, dantes a overdose curava-se assim, às chapadas, era porrada mesmo, atirava-se água à cara e depois era ao estalo até que viéssemos a nós.”
Rui não se lembra, nem sentiu, mas na eternidade dos cinco minutos em que se apagou teve espasmos, suou fartamente, tremeu, a respiração enfraqueceu, respirava em borbulhas, quase sem pulso, os lábios e as pontas dos dedos a azular, o coração praticamente parado, o cérebro embotado em congelação.
“Foi uma overdose”, diz ele à NM. “Exagerei. Meti duas quarteiras de heroína com mais duas de cocaína, é um caldo de speedball, uma acalma, a outra excita, meti quatro doses na seringa duma vez. Uma confusão. Se pudessem ver o meu cérebro, via-se o meu sistema nervoso paralisado, não respondia, todo à toa, sem reação neuronal. Mas acordei bem, satisfeito, não senti nada, zero dores, a droga ainda estava toda a bater. E as caras deles aliviaram-se logo, sobretudo a do Sapatas, o Sapatas já se foi, disse-me depois naquela noite que julgava que eu morria nos braços dele. Que aflição, ele a ver-me ali a breakar.”
“Tinha nojo de mim, só queria morrer”
Rui Salvador conta isto 20 anos depois. Agora tem 48 anos, está limpo de todas as drogas há dez, continua a morar com a mãe e um irmão no mesmo bairro do Porto, o Lagarteiro, o último bairro social da fronteira com Gondomar. Mas o bairro agora parece outro, outra cara, cara lavada, teve amplas obras, arranjou-se na segunda década de 2000, “já não é a praia tóxica escaqueirada vinte anos atrás”. E o Rui, que se demora agora na encosta entre os pinheiros mansos e as mimosas que logo vão despontar, olha cheio de melancolia para o Bloco 13 onde tudo aquilo se passou. E olha lá para baixo, vê a parede tijolada, pichada de grafitos frescos, e lê alto o que lá está: “Favela chick, B13 PRT LET, Rabica” e explica que “o Rabica também já morreu, foi no ano passado, ele tem um filho craque da bola, não morreu de droga, foi de mota, num acidente”, e o Rui diz isto desolado, a cara fechada e não torna a sorrir.
A deambular pelo bairro numa manhã fria de fevereiro, a reexaminar a memória, Rui Salvador, que é angolano e tem cara igual à de Herbie Hancock quando o pianista está longe do piano, aquele cabelo preto encrespado, mas num corte de ângulo reto, como se a sua vida começasse e acabasse na cabeça, sempre na linha, diz que o que fica depois da overdose é um receio frio, uma inquietação que aparece, às vezes aparece sem ele saber. “Passas uma overdose e sobrevives, faz-te desconfiar, ficas ferido, mas isso não te impede de consumir se fores injetor de heroína como eu fui. Aliás, depois da overdose, já à noite, antes de me deitar, tornei-me a injetar. Deu-me medo, mas a vontade de consumir quando consomes heroína excede tudo, até o horror de morrer.”
Injetou-se dos 18 aos 35 anos. Também fumou cocaína, misturou as duas no speedball intravenoso, bebeu álcool imoderadamente, “aos pacotes pela manhã, misturava tudo”. E depois parou. Parou com tudo, esteve seis anos com metadona, a droga de substituição que o levou ao desmame final, suou convulsamente, tremeu verde com espasmos, tudo a doer, e pelo meio recaiu. “Caí fundo durante um ano, recaí, tornei a abusar, foi muito grave, grave mesmo. Via-me de fora de mim e só via escuridão, uma negrura que me cercava e me apertava o corpo todo até ao coração. Tinha nojo de mim, só queria morrer, não tenho vergonha. E mais do que uma vez tentei mesmo morrer”, diz numa voz distanciada, varada, os olhos calmos a remoer.
“Fui sem-abrigo, já enganei, já roubei, já vivi no mato, este mato aqui do Parque Oriental ao pé de casa, puseram-me fora de casa, já desmaiei na porta do prédio sem saber, dormi tantas vezes molhado, pés, cabeça e ossos a gelar, perdi empregos, vi amigos a morrer, mas nada disso importava, só me queria injetar.”
Rui reinventou-se, é um par exemplar
Rui é dessa geração que foi jovem nos anos 1980 e que cresceu na falta de informação. “É uma geração inteira de onde saíram muitos dos heroinómanos e ex-heroinómanos que hoje andam na casa dos 50 anos como eu. Muitos saltaram diretamente do haxixe para a heroína. Na altura não sabíamos mais, foi quando houve aquela crise de canábis de 1987, não havia um grama de haxixe na rua, nada. Era tudo muito diferente, consumia-se às cegas, sem apoio médico, sem consultas, desinformados, todos a partilhar seringas nas veias uns dos outros, as seringas gratuitas só vieram a meio dos anos 1990, costumávamos desinfetá-las com água a ferver puxada para dentro da seringa, e maravilhávamo-nos a vê-la a ferver lá dentro… Não desinfeta nada, claro, que tolos, é um milagre nunca ter apanhado hepatites, HIV ou outra coisa má pior.”
Com a vida reinventada, desdobra-se hoje a ajudar outros como ele já foi: trabalha à tarde e à noite como par na Contato, na Rua da Banharia, Baixa do Porto, uma IPSS gerida pela SAOM – Serviços de Assistência Organizações de Maria que acolhe 150 utentes por mês. Também sai às manhãs com as carrinhas da metadona da Girugaia e é muito requisitado pelo saber acumulado, consegue chegar-se aos que estão afundados como ele esteve. E prepara-se agora para firmar contrato com a APDES, a Agência Piaget para o Desenvolvimento, uma ONG criada em Gaia em 2004 cuja missão é intervir para melhorar o acesso à saúde, emprego e educação de pessoas vulneráveis que usam substâncias psicoativas ilícitas e/ou são trabalhadores do sexo.
“É uma dádiva que tenho que devolver”, diz Rui Salvador, “já me salvaram, não desistiram de mim” – e os olhos marejam de memória e ele repete o nome da psicóloga que o salvou, Sílvia Azevedo, da Arrimo, “uma mulher muito bonita, muito boa, Sílvia Azevedo”. E Rui, um altruísta cheio de clemências, recompõe-se, conclui-se, a vida é só futuro: “Agora tenho que salvar quantas pessoas puder. É isso que vou fazer enquanto viver”.
Mortes crescem há cinco anos
Os números mais recentes do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, de 2018, alarmam. Dos 307 mortos nesse ano com a presença de substâncias psicoativas ilícitas, 49 foram overdoses, o que deu uma média de uma overdose por semana.
Portugal tem das taxas anuais de morte induzida por droga mais baixas da Europa: o Reino Unido lidera (3 256), depois a Alemanha (960) e a Turquia (941); no canto oposto a Bulgária e Eslováquia (18 e 19 mortes em 2016). Mas as nossas mortes crescem há cinco anos sem parar: 30 óbitos em 2016, depois 38 em 2017, depois 49 em 2018.
O estudo do SICAD detalha três drogas nas overdoses e destaca os opiáceos, droga depressora e calmante como a heroína, que se manifestou em 65% de casos. Depois vem a cocaína, alcaloide estimulante (51%), e depois a metadona (31%), narcótico de substituição. O relatório sublinha a subida de casos quer com opiáceos quer com cocaína.
Mas há outro dado a preocupar: em 92% das overdoses detetou-se o uso combinado de várias substâncias, sobretudo heroína com cocaína, mas também com álcool (45%) e com o ansiolítico benzodiazepina (20%). Hoje os utilizadores de heroína rondam os 50 mil (eram mais do dobro em 2001) e 30 mil são de alto risco.
Mais puras, mais fortes, mais acessíveis
“É umas campainha de alerta”, diz à NM João Goulão, diretor do SICAD. “O número de overdoses não é ocasional, revela uma tendência constante de subida que não podemos ignorar.”
Goulão dirige o Serviço de Intervenção desde 2012 e antes comandava o IDT-Instituto das Drogas e Dependências, extinto nesse ano para dar lugar ao SICAD, departamento das Administrações Regionais de Saúde. Por que sobem os casos e sobem tanto? “Por um lado, as drogas são cada vez mais puras e mais fortes; por outro, é cada vez mais fácil adquirir substâncias em compra postal na Internet.”
O diretor do SICAD aponta dois cenários em que é preciso atuar já. Primeiro: “A criação de mais salas de consumo assistido para injetores e fumadores de opiáceos”. Há apenas uma unidade móvel em Lisboa, cidade que deverá abrir neste ano mais duas. Devem seguir-se as Câmaras do Porto e de Braga, já que é das autarquias a iniciativa de instalação das salas de chuto, já aprovadas em lei desde 2001 e comparticipadas a 80% pelo SICAD. Segundo: “A distribuição massiva, que só começou a acontecer agora, de naloxona, o antagonista das overdoses, em versão spray nasal, que advogo como medida fundamental. É um fármaco que salva vidas em segundos se estiver à mão dos usuários e for administrado rapidamente”.
Essas medidas devem exigir celeridade, sobretudo por causa de uma nova droga (muito) perigosa que começa a despontar em Portugal: fentanil, o super-opiáceo anestésico usado para dores extremas e que matou o cantor Prince por overdose em 2016 – é 50 vezes mais potente do que a heroína, 100 vezes mais forte do que a morfina; duas miligramas de fentanil dão uma overdose.
“O fentanil”, diz Goulão, “opioide sintético em pó fabricado na China, é um problema a ter no horizonte. Nos EUA e Canadá são uma epidemia [47 mil mortes em 2017, são 128 óbitos por dia]. Em Portugal, só registamos casos esporádicos e residuais, mas o fentanil exige já atenção e toda a nossa capacidade de previsão”.
“Experimentei quase tudo e sobrevivi”
Rui Coimbra, 46 anos, formado em psicologia no Porto, casado, uma filha adolescente, está no escritório da sua casa em Viseu e fala de drogas como se desse consultas literárias. Tem nas mãos um livro de poesia de Nicanor Parra, “um anti-poeta chileno, morreu com 103 anos, não conhecia”. O livro tem um título muito bonito, “Acho Que Vou Morrer de Poesia” e uma capa deslumbrante de uma pintura do renascentista Piero di Cosimo do fim do século XV, “Baco Descobre Mel”, com favos e centauros e monstros fabulosos. “As minhas drogas vêm da poesia, do rock and roll e do underground cultural. Eu sou da geração jovem de 1980, da liberdade do novo mundo”, diz Rui Coimbra. E a seguir, logo depois de falar de heroína e do “orgasmo abdominal”, cita os poetas que morreram viciosos, da sua eleição, “Pessoa, Pessanha, Sá-Carneiro, Rimbaud, Walt Withman”, e depois diz que é há muitos anos um utente de drogas ativo e funcional.
“Já experimentei quase tudo. Calmantes, excitantes, alucinogénicas, canábis, cocaína, crack [cocaína sólida em cristal], heroína, claro, é a que prefiro. Também já meti cogumelos, ácidos, speeds e MDMA [ecstasy], drogas psicotrópicas de alucinação para dançar. Já experimentei fentanil e quetamina, sempre com muito cuidado, são potentíssimas, nunca tive consumos animalescos, nunca tive muito dinheiro, tenho regras de funcionalidade social e familiar…”, diz Rui de uma só penada, de trás da secretária onde se veem folhetos da ONG Suport, Don’t Punish, da Release.org.uk e da Nice People Take Drugs. “Mas, sim, admito uma natureza de grande curiosidade pelos estupefacientes e alteradores de perceção.”
Começou muito cedo, Rui Coimbra. “Aos 13 anos já escorropichava vinho, aos 15 misturei dormicuns [sedativo, hipnótico], depois canábis, tanto em haxixe como em erva, eram muito populares na sociabilidade de 1980, depois heroína, tinha 18 anos, primeiro fumada, depois injetada, na injeção o efeito é mais rápido, os psicotrópicos são uma descoberta mais recente.”
Com uma cara cândida e desafiadora como a do cineasta João César Monteiro, mas mais novo, Rui também já andou “no gume do abismo”, já teve uma overdose, já sobreviveu. Atravessou várias desintoxicações e recaídas e controles substanciais.
Ele conta a overdose e desvaloriza-a. “Foi com heroína injetada, tinha 36 anos, estava aqui em Viseu, em casa, com um familiar. Foi simples, injetei-me e apaguei imediatamente. Caí desmaiado e todo mole no sofá. Não sentes sofrimento nenhum, apagas, sentes-te a ir muito tranquilo, uma coisa assim leitosa, sentes calor, um aconchego, um calor que é talvez, sim, gelado, mas é muito agradável e vais e nisso perdes os sentidos. A pessoa que estava aqui comigo entrou em pânico”, e Rui esboça meio sorriso, “antes de ligar ao INEM, ligou a alguém muito aflita a perguntar qual era o número do 112.…O INEM veio, eu estive 15 minutos apagado, disseram-me depois, tu não sentes o tempo, para mim foi um segundo, levei uma dose de naloxona e acordei imediatamente a ressacar. A naloxona faz isso”, diz Rui com grande calma, “limpa instantaneamente os opiáceos dos recetores cerebrais, é automático, daí a ressaca imediata. Não é nada bom, é como levares uma tremenda chapada por dentro da cabeça, tremes de frio, agudizas, dá-te cãibras fortíssimas, é um tal mal-estar geral, tanta inquietação, tanta confusão, espasmos exaltados, tens dores no corpo todo, o corpo é um só hematoma de garras a pulsar no teu interior de dor, é uma agonia sem parar”, e aqui Rui prolonga muito as vogais do substantivo, “uma agonia, é intolerável. E depois aquela secura, uma fome inumana de tornar a consumir”. Ato seguido, desvaloriza outra vez a overdose: consumiu novamente heroína passadas quatro horas, o tempo da naloxona se eclipsar, mas não sem antes insultar e correr de casa com os técnicos do INEM que lhe salvaram a vida, a tabela e o coração (e confessa isto com muito constrangimento, cheio de atrapalhação) e meteu a mesma substância, menos quantidade, a necessária para se aliviar do abismo exaltado de dor.
“Por que é que uso drogas?”, pergunta Rui a aventar quatro razões principais: “Para aumentares a tua performance, para colmatares vazios, por recreação pura e para autoterapia”. E depois dá ainda outra razão: “Porque sim, porque posso”.
Utilizador controlado de substâncias ilícitas, Rui Coimbra trabalha na CASO-Consumidores Associados Sobrevivem Organizados, uma IPSS do Porto com 60 utentes, gerida desde 2010 pelo Externato de Santa Clara e cuja missão passa por “promover direitos, saúde e dignidade das pessoas que usam drogas, em particular aquelas que as injetam”. É gestor de percurso e formador e assumiu recentemente a condição de par, um papel intermédio muito útil entre os profissionais de saúde e a cadeia de consumidores que o vê como um deles, alguém em quem podem confiar. E, subitamente, Rui Coimbra abre o livro tão bonito de Nicanor Parra ao calhas e lê uma pequena estrofe derrotista que acabou de descobrir: “Pelos vistos não temos remédio/ Fomos engendrados e paridos por tigres/ Mas comportamo-nos como gatos/ Agimos como ratos/ em circunstâncias de sermos deuses/ bastaria abrirmos um pouco as asas/ e pareceríamos seres humanos”.
“Eu fumo canábis, e depois?”
Todos os dias agora parecem dias de sol para João Santamaria, mesmo quando chove, e ele tem uma explicação muito simples para tal. Mas primeiro ele vai a 1987. Foi nesse ano que Soares presidente rejeitou uma geringonça PS-PCP- PRD, Cavaco censurado no Parlamento, e convocou as eleições legislativas que abriram a porta e a passadeira à maioria absoluta de Cavaco. Foi nesse ano que Portugal atravessou uma crise geral de falta de canábis e não havia um grama de haxixe na rua.
O acontecimento inaugurou um ciclo que se repetiu a cada década, em 1996, em 2005, de novo em 2019. O que sucedeu tem dois momentos. Primeiro: instala-se a carência, mais ou menos prolongada, e deixa-se repousar. Depois: reaparece o produto, diferente, mais caro, mais potente. É a regra constante da oferta e da procura e também impera na rua. Os efeitos do último ciclo ainda ressoam: a escassez de haxixe que cruzou todo o país no final do ano passado deu lugar agora à entrada de pólen de canábis em larga escala. O pólen é muito mais potente e o preço por grama cresceu quase 50%.
João Santamaria é coordenador do In Mouraria, um hub do GAT-Grupo de Ativistas em Tratamento, a ONG que acolhe em Lisboa 1100 utentes (55% sem-abrigo, 74% homens, 30% de migrantes, 3% de transexuais). João aponta: “Isto nunca foi bem estudado, ou se foi, não foi divulgado. O que sucede hoje é que o haxixe de Marrocos entrava cá a cinco euros a placa e este pólen é agora vendido a oito euros ou mais, e é menos quantidade. O THC [que dá o efeitos psicoativo e neurotóxico, isto é, que dá a “moca”] desse pólen é elevadíssimo, é brutal, chamam-lhe super-pólen”.
E por que é que João fala nisto? Porque há ainda outro efeito de potencial malévolo, ele alerta, e que se poderá replicar agora como nos anos 1980: “Naquele ano, perante a escassez de haxixe, muita gente começou a usar heroína, que manteve sempre o preço constante e sempre baixo (cinco euros a dose). Desgraçou muita gente da geração jovem e temo que agora possa acontecer outra vez. É muito perigoso, a heroína é uma droga devastadora, altamente aditiva, mas é de esperar, lamentavelmente, que vejamos mais overdoses”.
O coordenador do In Mouraria avança ainda outra leitura sobre a substituição do haxixe pelo super-pólen: “Como estamos à beira de iniciar de novo a discussão da legalização da canábis, com BE, PS, PSD com propostas legislativas, o preço do produto vai replicar o preço atual da rua, lesando-nos com uma hiperinflação. O consumidor vai ser assaltado”.
João Santamaria, 49 anos, pinta de ecologista escultor, casado, um filho, um neto, é, como todos os casos, um caso particular: ex-injetor, ex-sem-abrigo, bebeu álcool aos 13 anos, haxixe aos 14, heroína e coca e as duas combinadas aos 17, corria o ano 1987. Teve uma overdose aos 26, atrás da casa dos pais, Cova da Piedade, Amadora, tornou a consumir no dia a seguir. “Fugi do hospital de cadeira de rodas, as pernas paralisadas, agarrado ao rins, a tripar, seco, a ressacar, quando me vi cá fora, corri de muletas ao dealer comprar.”
João limpou-se no ano 2000, recaiu cinco anos depois, parou novamente em 2006, andou um ano carregado de metadona, e continua limpo até hoje. Há cinco anos celebrizou-se na capa de uma revista que fez título com a cara dele: “Eu fumo canábis, e depois?”. Ele explica-se: “É terapêutica. É a minha substância de substituição, uma droga leve que me livra das duras. Fumo duas vezes ao dia, depois do almoço, depois do jantar. Para mim funciona, nunca mais toquei em heroína ou cocaína. E sou um par exemplar, aconselho, ajudo, salvo vidas, sou viciado em viver. E quando acordo todos os dias, ainda antes de espreguiçar, já estou a sorrir, fui um abismo e superei-me, na minha vida é sempre sol”.