Quatro semanas na pesca do bacalhau

O filme é dedicado a “Nico”, levando o cinema português até aos “Mares do Fim do Mundo”, tal como o livro de crónicas de Santareno

Artur Ribeiro agarrou no projeto que Nicolau Breyner não teve tempo de fazer e levou-o para o Mar do Norte. O realizador e os atores Virgílio Castelo e João Reis contam-nos agora como essas quatro semanas em alto-mar os transportaram para as condições “quase impossíveis” dos homens da pesca do bacalhau.

Algures no verão de 2015, Nicolau Breyner desafiou Artur Ribeiro a adaptar para o cinema “O Lugre”, de Bernardo Santareno. Tratava-se, segundo ele, da melhor peça de teatro do século XX e também de um projeto antigo que decidira finalmente levar por diante. Artur leu e pesquisou sobre a faina maior, conversou com velhos pescadores, visitou várias vezes o Museu Marítimo de Ílhavo e escreveu a primeira versão do guião no início de 2016. Nicolau viria a morrer a 14 de março desse ano, sem realizar o seu sonho. O filme “Terra Nova” é agora esse mesmo sonho que Artur agarrou, incitado pela produtora Ana Costa. Com estreia a anunciar brevemente, o filme é dedicado a “Nico”, levando o cinema português até aos “Mares do Fim do Mundo”, tal como o livro de crónicas de Santareno.

Seis décadas depois de “O Lugre”, o realizador e argumentista de “Terra Nova” subiu acima do círculo polar Ártico para contar a história de 13 pescadores e um capitão numa ficcionada primeira viagem à Gronelândia, no início dos anos 1930. Virgílio Castelo, no papel de capitão Silva, é o homem que comanda o navio sem permitir o mínimo desvio na rota. E João Reis é Manuel, o imediato que faz cumprir as suas ordens, temendo a qualquer momento a revolta dos tripulantes.

Pedro Lacerda é Albino e trouxe a má-sorte a bordo. João Catarré, Zé Sol, tem a ambição de liderar os pescadores, mas Tó Maria, interpretado por Miguel Borges, é quem assume o lugar de líder rebelde. Vítor Norte, o Ti João, é o contramestre, figura paternal que tenta conter essa rebelião entre a cantina e a camarata do navio. E Vítor D’Andrade é o médico Bernardo, que balança entre a compaixão pelos pescadores e a lealdade para com o capitão. É também aspirante a escritor e personagem inspirada no próprio Santareno, que o argumentista acrescentou a esta viagem.

João Catarré interpreta Zé Sol e tem a ambição de liderar os pescadores

São eles parte de um elenco a mostrar um lado trágico destes heróis quase sempre submerso na memória coletiva, a qual por regra exalta os marinheiros destemidos dos Descobrimentos ou das campanhas da pesca do bacalhau. A distância entre essas duas épocas pode até ser longínqua. Mas o medo é o mesmo. E, em “Terra Nova”, ele agiganta-se à medida que se avança para norte, enrugando os rostos dos pescadores com o desespero, a fadiga e as superstições. Longe do chão e afastados das famílias, eles foram homens no limite não somente da geografia como da sanidade.

Artur Ribeiro inspirou-se na obra de Santareno para refletir sobre as condições duras a bordo dos navios que, em momentos de perigo, levam homens isolados durante longos períodos a virarem-se uns contra os outros: “Isto tanto podia passar-se num lugre, como a bordo de uma estação espacial, ou numa prisão, ou em tantos outros cenários que o cinema ou a literatura têm explorado, colocando personagens em situações extremas em que o melhor e o pior da humanidade vêm ao de cima”.

Um naufrágio no primeiro dia

Foram praticamente quatro semanas a viajar do norte da Noruega até à Holanda, a rodar o filme no alto-mar, conta Artur Ribeiro. Dias a fio confinados no lugre Santa Maria Manuel. Sem “nada mais do que o céu e o mar”, como recorda Virgílio Castelo. Uma imensidão de “céu e mar” que penetrou nas personagens, conduzindo os atores para tudo aquilo que os pescadores passaram nos anos 1930 durante dias, semanas, meses em que também estiveram fechados entre o céu, o mar e o frio da Gronelândia. Esse foi o embate inicial que os interpelou logo no arranque das filmagens.

“Terra Nova” conta a história de 13 pescadores e um capitão numa ficcionada primeira viagem à Gronelândia, nos anos 1930
“Terra Nova” conta a história de 13 pescadores e um capitão numa ficcionada primeira viagem à Gronelândia, nos anos 1930

O Mar do Norte, nesse primeiro dia, mostrou do que seria capaz. Não foi possível fazer um único plano. As filmagens foram suspensas após um dóri (bote) naufragado e João Catarré assistido no hospital. “Isto vai acabar mal”, pensou Virgílio Castelo. Mas o ator voltou na manhã seguinte e os trabalhos foram retomados. “Se calhar, foi preciso aquele primeiro dia para que, ao filmar, todos refletissem nos seus rostos o respeito pelo mar”, diz Artur Ribeiro. A pouco e pouco, os atores incorporaram na representação essa dificuldade que é estar dentro de um navio. “Eu, como não tinha experiência nenhuma, fiquei os primeiros dias a tentar lidar com o mar”, confessa Virgílio Castelo.

Esse foi o estágio que os transportou para as próprias dificuldades vividas pelos pescadores. “Tudo aquilo me fez pensar em como terá sido difícil, quase ao nível do impossível, gerir homens e situações durante meses e meses no mar e, sobretudo, não sabendo onde iam parar.” Essa incerteza, essa angústia e esse medo foram passando para a representação. Não de forma racional e intelectualizada, explica o ator: “Houve como que uma osmose entre os nossos medos e os medos daqueles pescadores, que aconteceu naturalmente e de maneira inconsciente, acabando por servir as personagens”.

João Reis terá sido a exceção entre um elenco inexperiente nas lides marítimas. Para ele, que já esteve na Marinha Portuguesa, as semanas entre os fiordes, as auroras boreais ou as plataformas de petróleo foram um “reencontro” com o Mar do Norte, 30 anos depois. Mas ninguém se iluda: “Tenho um medo do mar que me pelo”. Medo e atração, corrige ele, mas não chegou para recear o tempo que teria de passar confinado no mesmo espaço. “Sempre achei que estarmos fechados ou, de certa forma, presos no mesmo décor, que é o navio, iria potenciar algo de muito bom em nós, como aliás se provou.”

Vítor Norte, o Ti João, é o contramestre, figura paternal que tenta conter essa rebelião entre a cantina e a camarata do navio

Não significa que a rodagem tenha sido um mar de rosas. “É óbvio” que houve imensas limitações. Muita gente que enjoou e aspetos difíceis de gerir ou de executar do ponto de vista técnico. Desafios que acrescentaram constrangimentos às rotinas da equipa técnica, dos atores e da tripulação: “Mas o facto de estarmos juntos durante semanas solidificou a relação entre todos, criando um espírito de união fundamental para o resultado do filme”.

Juntos no mesmo barco

Nem podia ser doutro modo, ressalva Artur Ribeiro. Se, em qualquer filme, a preocupação central do realizador é a escolha do elenco, neste caso em particular mais determinante foi: “Neste aspeto, acho que fomos exemplares”. O bom ambiente e a camaradagem entre atores, tripulação e equipa técnica foi o que lhe permitiu pedir a todos cada vez mais empenho e mais entrega.

Estarem confinados foi o que aproximou os pouco mais de 40 homens dentro do mesmo barco e os fez sentirem-se como “verdadeiros marinheiros”, defende Artur Ribeiro. Quando se vivem dias seguidos “praticamente uns em cima dos outros” e sem ter para onde ir, que alternativa tinham estas criaturas senão procurar conhecer quem estava ali mesmo ao lado? “Desenvolvemos uma relação ótima entre todos, cada um com a sua personalidade, com os seus tempos e com a sua função”, conta João Reis. E não seria a mesma coisa se, ao fim de cada dia de filmagens, fossem dormir ao hotel para regressarem na manhã seguinte, reconhece.

Nem sequer teria sido possível “extrapolar tanto as emoções” como o realizador exigiu dos atores. No filme, a tensão está sempre presente, subindo mais ou descendo menos de intensidade, mas sempre presente. E, portanto, se, por alguma razão, a relação entre a equipa não fosse “a melhor”, o resultado poderia ser dramático como um naufrágio em alto-mar. “Houve momentos de violência que, embora absolutamente necessários para a narrativa, atingiram níveis extremos, só possíveis por haver confiança, à-vontade e boa disposição entre todos”, realça Artur Ribeiro. O filme, aliás, obrigou-o a pensar num elenco que funcionasse bem tanto separadamente como num todo: “Ao conseguir isso, senti que tinha tudo para o filme correr bem”. Bastar-lhe-ia dar espaço para cada ator desenvolver a personagem.

Virgílio Castelo, Artur Ribeiro e João Reis, em Lisboa, em terra firme, recordaram à “Notícias Magazine” os tempos passados em alto-mar e em gravações
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Foi como se, durante aquelas quatro semanas, o lugre estivesse a navegar em duas dimensões paralelas. Num dos extremos, os pescadores do Terra Nova engolidos pela neblina de cada vez que se lançavam sozinhos num bote tão instável quanto o seu regresso ao navio. Do outro, atores, técnicos e tripulantes do Santa Maria Manuel em “longas horas de conversas ou grandes sessões de cinema”, relata João Reis. Às vezes – admite – “desatinavam” com a comida, mas regra geral havia sempre muita animação e até “várias bandas” improvisadas em cima do joelho para agasalhar as noites frias. Em terra firme, só estiveram mesmo por duas vezes para “relaxar” em povoações no meio do nada com meia dúzia de casas e ruas praticamente desertas.

Felizes coincidências

À distância de mais de um ano das filmagens e a milhas do Mar do Norte da Noruega, Artur Ribeiro assegura entre risos que, se fosse preciso embarcar já amanhã, ninguém hesitaria. “Estou convencido de que está tudo mortinho por repetir a dose e fazer uma sequela.” A viagem do lugre Terra Nova, contudo, terminou e está prestes a estrear nas salas de cinema. Mesmo a tempo do centenário de Bernardo Santareno (1920-1980). É pura coincidência. Até parece que os astros, o mar e os ventos se conjugaram para esse final feliz.

O calendário não foi programado para cair mesmo em cima das comemorações, que arrancaram em janeiro com um colóquio internacional na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e continuam ao longo de todo o ano com diversas iniciativas promovidas por autarquias, teatros ou revistas literárias. “Foi um mero acaso, este filme é o culminar de uma conversa tida há cinco anos com o Nico e, a partir daí, seguiu o seu curso até chegar aqui e agora”, assinala o realizador.

Outras estranhas coincidências surgiram neste filme, surpreendendo o realizador. É que, não havendo relatos ou documentos da primeira viagem dos pescadores portugueses pelos mares do Ártico, Artur Ribeiro sentiu-se livre para imaginar o que poderia ter sido, se fossem as personagens de Santareno a fazer essa travessia, “com as suas personalidades e os seus conflitos exacerbados”. Só mais tarde viria a descobrir que o primeiro capitão a levar um lugre à Gronelândia foi o bisavô do compositor da música do filme, Nuno Côrte-Real. Chamavam-lhe o capitão Caveira, “estropiando maleficamente o nome de Crajeira”, como contaria o próprio Santareno nas suas crónicas sobre a faina maior, reunidas “Nos Mares do Fim do Mundo”.

Ausentes presentes

Ao longo da rodagem no alto-mar, até à pós-produção em terra firme, Santareno esteve não somente nas personagens que navegaram no “Terra Nova”, como também nessas felizes coincidências. Foi figura constante dentro e fora do filme, tal como a presença de Nicolau Breyner. É por ele e por causa dele que esta epopeia marítima teve início e está agora concluída, dizem os três. E esse terá sido muito provavelmente o motivo para “Nico” se ter intrometido tantas vezes nas conversas que intercalaram as filmagens. “Rimo-nos muito à conta dele”, recorda Artur Ribeiro. Conhecendo todos bem o seu feitio, sabiam como era um homem que “odiava o frio”.

Seis décadas depois de “O Lugre”, o realizador e argumentista de “Terra Nova” subiu acima do círculo polar Ártico

Muitas vezes, naquelas manhãs mais geladas, realizador e atores não conseguiram evitar pensar na reação que teria se estivesse ali com eles a bater também os dentes – “Estes gajos são malucos! Porque é que se foram enfiar no Polo Norte!?” – era o que diria muito provavelmente, garantem. Já se percebeu, portanto, que não seria de todo ideia dele rodar o filme nas águas do Atlântico Norte: “Quando ele pensou neste projeto, de certeza que nunca colocou essa hipótese”, sublinha o realizador e argumentista do “Terra Nova”.

Se calhar, seria mais ali ao largo de Cabo Verde, supõe ele, enquanto os três soltam mais risadas. Mas foi para cima do círculo polar Ártico que tudo acabou por acontecer. O que eles gostavam agora de descobrir é o que acharia “Nico” do resultado final. “Nunca saberemos ao certo a resposta a esta pergunta, mas acho que ele ia ficar muito contente”, conclui o realizador. “Sim, também acho que sim”, concorda Virgílio Castelo. Só por isso, valeu a viagem.

Um erro de navegação lança os portugueses na terra dos bacalhaus

O início da pesca do bacalhau, entre os portugueses, é tão remoto quanto a epopeia dos Descobrimentos. Terá sido fruto de um engano dos navegadores que, tentando achar a contracosta das Índias, se depararam com a Terra Nova dos Bacalhaus. Essa é a hipótese mais provável, explica Álvaro Garrido, historiador e especialista da história marítima e da pesca. Mas, tratando-se de um episódio menor do império português, as deduções só chegam através de escassos registos cartográficos.

O que se sabe é que a relação com o bacalhau é anterior às primeiras viagens à Terra Nova, na viragem do século XV para XVI, feitas por João Álvaro Fagundes e os Corte Reais. Segundo o coordenador do grupo de História da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, terá começado na Idade Média, nas trocas de sal com os povos nórdicos e pelo comércio com os ingleses.

Mas será preciso esperar pelo Estado Novo para a pesca do bacalhau ganhar impulso. É a partir dos anos 1930 que a indústria e o abastecimento são reorganizados “de alto a baixo”, com a renovação da frota, limitações às importações e o controlo político e administrativo da atividade. Esse é o desígnio nacional que permitirá subir as capturas dos 11% da produção, em 1934, para os 70%, em 1960. Sucesso explicado pela abundância dos recursos, mas também pelas inexistentes restrições no direito do mar, como relembra o investigador.

A dureza da faina maior, nas águas do Atlântico Norte, foi ao longo de cinco meses documentada por Alan Villiers. O oficial australiano e repórter da “National Geographic” viajou na primavera de 1950 a bordo do bacalhoeiro Argus, a convite do Estado Novo

Os lugres eram uma extensão do país, seguindo para os baixios da Terra Nova e para a costa do Labrador, hoje província do Canadá. “Os portugueses só começaram a pescar na costa oeste da Gronelândia em 1930 e no mar da Noruega em 1978.” Para lá da dimensão literária, os textos de Santareno são igualmente um registo documental, relatando essas viagens de seis meses da pesca à linha com homens “vindos de todo o litoral, do Minho ao Algarve”, diz o investigador. “As principais comunidades de recrutamento eram Vila do Conde, Ílhavo, Figueira da Foz e Olhão (Fuzeta).”

No alto-mar, as jornadas ultrapassavam, muitas vezes, as 20 horas na tentativa de encher o porão antes de o inverno congelar o mar, no caso da Gronelândia. As condições duras e os rendimentos dependentes da faina estiveram na origem de muitas rebeliões. E também de uma greve histórica, em 1937, que mobilizou milhares de pescadores contra a obrigatoriedade de se inscreverem no mesmo navio da campanha anterior, eliminando a concorrência pelos melhores pescadores e tabelando os salários para valores fixos. A paralisação – como conta Álvaro Garrido, em “O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau” – acabaria com a polícia a levar os pescadores da prisão diretamente para os navios. Boa parte dessa herança tem lugar cativo no Museu Marítimo de Ílhavo. O museu, aliás, disponibiliza um arquivo digital das campanhas desde o início do século XX. Com base em mais de 20 mil fichas do antigo grémio dos armadores, é possível pesquisar os nomes dos marinheiros e dos navios que ajudaram a construir “o primeiro símbolo da identidade nacional”, como defende o historiador da Universidade de Coimbra.