Para acabar com a lotaria dos genes

Também possível, embora menos consensual e proibido pela lei portuguesa (a não ser em casos de doença genética ligada ao sexo), é a seleção do sexo do bebé (Foto: Kjpargeter/Freepik)

Depois da seleção de embriões humanos sem doenças genéticas graves, caminha-se agora rumo à edição de embriões para melhoramento genético. São muitas as questões e os riscos para o futuro da espécie.

A polineuropatia amiloidótica familiar – conhecida como doença dos pezinhos – é uma doença genética rara, degenerativa e muito limitadora da qualidade e esperança de vida. E basta que um dos membros do casal seja portador da alteração genética para que a probabilidade de transmissão a um filho ronde os 50%.

Acontece que hoje os casais não têm de ficar sujeitos – nem sujeitar os filhos – à lotaria dos genes. A doença dos pezinhos é uma das doenças genéticas graves aprovada pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) para o diagnóstico genético pré-implantação (DGPI) e seleção de embriões, conforme previsto na lei portuguesa sobre a Procriação Medicamente Assistida (PMA). Estas técnicas permitem que sejam identificados os embriões não-portadores de anomalia genética grave, antes da sua transferência para o útero da mulher. De acordo com o CNPMA, entre janeiro de 2013 e dezembro de 2018 foram autorizados 127 processos de seleção de embriões.

Como explica Alberto Barros, professor catedrático e diretor do Serviço de Genética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), membro do CNPMA e responsável pela introdução desta técnica em Portugal, “os embriões são obtidos por fertilização in vitro, através de microinjeção intracitoplasmática, e ao terceiro ou ao quinto dia é feita uma biópsia do embrião cuja amostra é enviada ao

”. O laboratório de genética da FMUP, que dirige, é o único em Portugal a fazer este diagnóstico que torna possível, posteriormente, a seleção de embriões: os saudáveis são implantados no útero materno, os portadores de doença genética grave são eliminados. Atualmente, “a sensibilidade diagnóstica da técnica será superior a 98%”, adianta Alberto Barros. Isso quer dizer que, por exemplo, no caso da doença dos pezinhos, a possibilidade de o feto ser portador da doença desce de 50% para menos de 2%.

“Esta técnica deve ser encarada conforme está prevista na lei: o seu objetivo é evitar a doença genética grave, não é uma metodologia para uma prática eugénica”, declara Alberto Barros. Por essa razão, a aceitação do caso como doença genética grave está dependente da aprovação do CNPMA, que avalia os pedidos de diagnóstico de embriões dos vários centros de procriação medicamente assistida do país. “Na ausência de uma definição legal de doença genética grave, o Conselho considera que se aplica a doenças que causam sofrimento significativo e/ou morte prematura”, clarifica o especialista.

A lista de doenças genéticas graves assim consideradas pelo CNPMA incluía, no final de 2018, 100 patologias, cobrindo situações como a doença dos pezinhos, o carcinoma hereditário da mama/ovário por mutação no BRCA1 ou BRCA2, a Doença de Huntington ou a Síndrome do X-frágil. Mas em quase todas as reuniões do Conselho há novos pedidos.

Bebés à la carte?

Também possível, embora menos consensual e proibido pela lei portuguesa (a não ser em casos de doença genética ligada ao sexo), é a seleção do sexo do bebé. Alberto Barros concede que “é legítimo e humano que tenhamos o desejo de ter um menino ou menina”, mas, apesar de respeitar e compreender essas inclinações, entende que “o ato médico não deve ser discriminatório em razão do sexo”.

Nos Estados Unidos, além de ser autorizada a escolha do sexo por uma questão de “equilíbrio familiar”, já se abriram as portas para a escolha de características físicas. “Escolha a cor dos olhos do seu filho”, lê-se no site de The Fertility Institute. Mas a clínica não se fica por aí: a promessa que faz é que, em 2021, já será também possível escolher a altura. Alberto Barros considera esta possibilidade eticamente questionável e “hoje ainda ficção científica”. Por um lado, porque “as nossas características físicas são multifatoriais, resultam da interação entre os genes e fatores ambientais”. Por outro, na formação dos espermatozoides e dos ovócitos há um processo de recombinação génica. “Tal como num jogo de cartas, o baralho é o mesmo, mas o resultado da distribuição pode ser bastante diferente.” Ou seja, não há garantias quanto ao resultado final.

“Se deixamos ao critério de pais e cientistas a possibilidade de manipular o genoma do embrião, entramos numa deriva genética que pode não dar bons resultados”
Rui Nunes
Médico e professor

Mas hoje, mais do que selecionar embriões, começa-se a tentar editá-los, manipulando as suas características. Ou seja, a alegada vantagem que tornaria possível passar a tratar os embriões “doentes” em vez de simplesmente os descartar. Mas há muitas dúvidas éticas quanto a estas práticas. “Eu percebo as boas intenções mas não creio que isso vá acontecer. Aliás, o que fizeram na China, e provavelmente agora se vai repetir pelo Mundo, é pegar em embriões ‘normais’ e condicioná-los geneticamente para serem super pessoas”, assinala Rui Nunes, professor catedrático de Bioética na FMUP, presidente da Associação Portuguesa de Bioética e o atual Coordenador do Departamento de Investigação da Cátedra de Bioética da UNESCO.

Rui Nunes refere-se ao caso datado do final de 2018, quando o cientista chinês He Jiankui veio a público dar conta do nascimento de duas gémeas cujos embriões manipulou – através da técnica CRISP-Cas9 – tornando-as resistentes ao VIH/sida. A comunidade internacional em peso condenou este procedimento e a Organização Mundial de Saúde defendeu mesmo a proibição das alterações genéticas de embriões humanos até que os riscos – técnicos, éticos e sociais – sejam devidamente estudados. Mas a proibição vai ser difícil de levar a cabo, defende o especialista em Bioética, “atendendo à quantidade de centros de investigação de excelência em todos os países do Mundo e, paralelamente, à inexistência de mecanismos de governação globais em matéria de ciência e tecnologia”.

O que vem a caminho?

“Com a edição do genoma dos embriões, o que se pretende é uma mudança de paradigma. Já não se trata de evitar o nascimento de bebés com doenças, mas antes de tentar criar seres humanos melhorados geneticamente no campo físico, intelectual, cognitivo e comportamental. Até já se fala em melhoramento moral”, alerta Rui Nunes.

Apesar de tecnicamente já ser possível fazer algumas alterações, através da técnica CRISP-Cas9, há dois grandes problemas, o primeiro deles associado ao pouco que ainda se sabe sobre as consequências destas alterações. Rui Nunes: “No caso das gémeas chinesas, as meninas ficaram com o genoma irreversivelmente alterado para ter maior resistência ao vírus do VIH/sida. Mas à custa de quê? Não sabemos. Pode alterar o processo de envelhecimento ou a resistência a outras doenças sem que haja um benefício imediato, já que o VIH/sida é prevenível e tratável”.

 

Igualmente graves são os problemas éticos que estas opções levantam. “Modificar o capital genético de um embrião – que amanhã vai ser uma pessoa geneticamente transformada – de acordo com um figurino que ela não escolheu é intrinsecamente errado”, sustenta. Além disso, lembra, estas alterações irreversíveis não estão a condicionar apenas o futuro da pessoa geneticamente editada: vão passar para a sua descendência, o que levanta também questões éticas quanto aos direitos das gerações vindouras.

Rui Nunes não exclui que um dia se possa chegar a um consenso à escala global que determine a possibilidade de alguns melhoramentos, mas primeiro, garante, é preciso haver uma reflexão e uma tomada de consciência sobre quais são afinal os valores universalmente partilhados. Caso contrário, assegura, estamos a ir por um mau caminho: “Se deixamos ao critério dos pais e dos cientistas esta possibilidade de manipular o genoma do embrião, estamos a entrar numa deriva genética que provavelmente não dará bons resultados: hoje é o VIH/sida, depois é a altura, depois a inteligência, depois a orientação sexual, depois outra coisa qualquer”.