Jorge Manuel Lopes

O riso das crianças dos outros

“Aquilo que mais queríamos” é a longa-metragem de estreia da realizadora Ulrike Kofler

Escolha de cinema, por Jorge Manuel Lopes.

Em “Aquilo que mais queríamos” há uma bancária, Alice, e um assistente social, Niklas. Depois de uma gravidez extemporânea e não concluída no início da relação, o casal não mais consegue ter filhos. Após a enésima tentativa falhada de fertilização in vitro, saem de Viena rumo a férias na Sardenha. No aldeamento turístico em que se instalam, aproximam-se cautelosamente da família de quatro, vinda do Tirol, que se instala na casa do lado: Romed e Christl, marido e mulher, David e Denise, filhos.

As crianças dos vizinhos acentuam a tristeza e o desnorte de Alice (interpretada com a contenção certa por Lavinia Wilson), mas também agitam um sentido de maternidade dormente, em especial na ligação que tece com Denise, a criança mais nova. Há uma tensão surda no casal que virá progressivamente à superfície durante as férias, originando uma desagregação suave e educada q.b., mas também inexorável. A macieza do desmoronamento que ocorre à vista do espectador é intimidante.

A longa-metragem de estreia da realizadora Ulrike Kofler é a representante austríaca na categoria de Melhor Filme Internacional aos Oscars 2021 e vive de uma bem conseguida gestão dos silêncios. Silêncios que tornam as eclosões dramáticas mais violentas – sobretudo a espécie de tragédia catártica que ocorre no último terço, exemplarmente mostrada (e ocultada), e que parece sacudir todas as personagens adultas de um certo torpor existencial.

“Aquilo que mais queríamos” é uma história contada com sobriedade que tenta responder (ou provar que não existem respostas…) a uma questão de encruzilhada: o que fazer de tanta vida conjugal por cumprir quando os planos centrais saem trocados, quando a chance de gerar um ser é um comboio que já não se conseguirá apanhar, quando há uma ferida que não vai sarar? A casa em obras que Alice e Niklas abandonam para o intervalo de férias, e que não cessa de criar problemas técnicos e financeiros, é uma metáfora óbvia mas convincente.