Neill Lochery: “O Porto é muito distinto de Lisboa. É como estar em Portugal sem estar em Portugal”

Neill Lochery, historiador escocês (Foto: Ana Fonseca/Global Imagens)

O historiador escocês Neill Lochery acaba de publicar o livro “Porto, a entrada para o Mundo”, uma viagem sobre os acontecimentos mais marcantes da cidade apresentada numa narrativa original. À NM, fala do que o surpreendeu na Invicta, passa por Lisboa e traça um retrato do Portugal recente, que tanto descreveu em três obras anteriores.

Ainda encerrado devido à pandemia da covid-19, o Hotel Infante Sagres, no Porto, abriu propositadamente as portas para receber Neill Lochery e a “Notícias Magazine”. Sentado num longo sofá de veludo, Lochery bebeu um café americano, mas não tocou nos éclairs que a mulher (e agente), Emma, comprou propositadamente numa afamada confeitaria da Baixa.

O que leva um escocês professor universitário em Londres a interessar-se tanto por Portugal ao ponto de lhe dedicar quatro livros de aprofundada investigação histórica?
É uma boa questão (risos). Sou professor de Estudos do Médio Oriente e do Mediterrâneo na University College, em Londres, e, apesar de Portugal não ser um país mediterrânico, num olhar não oficial é olhado como tal. E isso interessa-me bastante.

O que mais o fascina sobre a realidade do país?
Estive em Portugal como conselheiro cultural, nos anos 1980, em Coimbra, e, mais tarde, por várias razões, acabei envolvido em questões do Médio Oriente. Acabei por regressar a Portugal através, precisamente, do Médio Oriente, quando investigava documentação sobre refugiados que procuravam fugir para a Palestina durante a Segunda Guerra Mundial. Foi então que compreendi que Lisboa era uma parte importante da História. Em arquivos oficiais da Grã-Bretanha encontrei documentos em que Londres comunicava ao Governo português que não deveria aceitar que refugiados judeus passassem por Lisboa porque isso poderia provocar problemas ao Reino Unido. Além disso, havia a questão do volfrâmio e do ouro. Lisboa era a Casablanca da altura, onde tudo acontecia.

Daí ter partido para o seu primeiro livro sobre Portugal, “Lisbon, War In The Shadows Of The City of Light, 1935-1945” (“Lisboa, a Guerra Nas Sombras da Cidade Luz”), em 2011?
Exato, foi assim que mergulhei em Portugal e que, após um ano e meio de investigação, escrevi esse livro, sobre o papel de Lisboa na Segunda Guerra Mundial. Reuni uma quantidade imensa de documentação oficial em arquivos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América. Também consultei a Torre do Tombo, fascinante pelo material fantástico e variado que reúne. Posteriormente, analisei o Estado Novo, também através de documentos oficiais, nomeadamente do Foreign Office [Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido], e sobre o período revolucionário do pós-25 de Abril. Daí nasceram os restantes dois livros, “Lisboa a cidade vista de fora, 1933-1974” e “Portugal saído das sombras”.

Foi fácil ter acesso a fontes tão privilegiadas?
Tive a sorte de poder consultar documentação que, geralmente, não é libertada antes de se cumprirem 30 anos sobre os acontecimentos em causa. Foi muito bom analisar esse período através da visão britânica dos mesmos, uma espécie de olhar exterior, também do ponto de vista dos EUA, de todos os eventos que ocorreram até à consolidação do regime democrático.

A vontade de mergulhar na História do Porto surgiu quando?
Enquanto fazia as investigações para os livros anteriores. Várias pessoas foram-me dizendo que o Porto tem uma história específica interessantíssima que também merecia ser aprofundada, nomeadamente a que diz respeito ao período do liberalismo.

E mudou-se de armas e bagagens…
Sim, a investigação começou há dois anos, ainda em Inglaterra. Vim depois para o Porto para consultar arquivos oficiais e constatei que a grande maioria desses arquivos está na Torre do Tombo… em Lisboa. Foi tudo novo para mim. Claro que sabia do liberalismo ou de como o Porto se tinha tornado o centro do comércio em Portugal, mas não conhecia de todo o debate que atravessou o país entre as teses absolutistas e liberalistas, da guerra entre os irmãos D. Miguel e D. Pedro. Foi um grande exercício de aprendizagem.

O que mais o surpreendeu durante a investigação?
Precisamente a guerra entre os dois irmãos que representavam visões diferentes do exercício do poder.

No livro refere que essa é a parte mais importante de toda a história da cidade…
O Porto tem vários episódios que lhe marcaram a personalidade. Mas a guerra entre D. Miguel e D. Pedro foi muito significativa pela noção de resiliência dos portuenses, da sua necessidade de sobrevivência durante o cerco da cidade (1832-1833). Foi um cerco sangrento, com imensa artilharia usada por ambos os lados, com muita destruição, o Porto era então perigosíssimo para viver. Quando terminou a guerra, foi o começo de algo novo, de inúmeras batalhas entre diferentes grupos liberais sobre a Constituição, etc. E o interessante foi que esses debates sobre a Constituição não tiveram lugar em Lisboa, a capital onde estavam e estão o poder e as elites, mas no Porto. Foi um movimento ao contrário.

Considera que o papel do Porto na História de Portugal é subestimado?
Claro que sim. Muita da política de Portugal passou-se no Porto. Outro exemplo, além das batalhas relativas ao liberalismo, foi a questão republicana. A primeira tentativa de derrubar a monarquia aconteceu no Porto a 31 de janeiro de 1891, quando os mais importantes movimentos políticos estavam lá centrados.

O Porto é a mais britânica das cidades portuguesas?
Arquitetonicamente sim. Olhando para alguns edifícios, como o Palácio da Bolsa ou o Hospital de Santo António, é fácil imaginar que estamos em Edimburgo, na Escócia, ou em qualquer cidade do norte de Inglaterra.

(Foto: Ana Fonseca/Global Imagens )

Porquê?
O estilo da arquitetura é idêntico, aliás houve arquitetos britânicos envolvidos nos projetos de diversos edifícios do Porto. É curioso que geralmente as cidades têm um estilo único e o Porto é muito eclético. Além disso, tem um sentimento britânico.

No sentido cosmopolita, como agora é quase moda classificá-lo?
Cosmopolita talvez não seja a palavra mais adequada. É mais uma espécie de sentimento europeu, mais até do que Lisboa, o que vem, lá está, da arquitetura e de como a cidade foi sendo ordenada ao longo dos tempos.

Esse sentimento quase britânico ainda é sentido ou foi desaparecendo com o avançar das gerações?
Ainda permanece, nomeadamente na personalidade dos portuenses. Para as pessoas do Porto o trabalho é encarado como a parte central da vida. Curioso que uma das primeiras coisas em que reparei quando cheguei ao Porto foi nos tempos das horas de ponta no trânsito, que são muito mais cedo do que em Lisboa. No Porto há uma cultura de empreendedorismo e de trabalho mais atrativa para estrangeiros que queiram investir em Portugal.

O turismo não veio alterar esse foco quase genético da cidade?
Não creio. Lisboa tornou-se muito mais “turísticocêntrica”, foi quase varrida pelo turismo, um pouco à imagem do que aconteceu em Barcelona. O Porto teve mais cuidado nessa matéria.

A personalidade geral dos portuenses pode ser comparada à dos lisboetas?
São diferentes. As pessoas do Porto estão mais comprometidas com o resto do país, ao passo que em Lisboa são mais centradas nelas próprias e na cidade. Isso explica muito o centralismo do país.

Esse fenómeno apanhou-o de surpresa? Sobretudo por estarmos a falar de um país geograficamente não muito extenso como Portugal?
Surpreendeu-me, sim. No entanto, não vejo pessoas no Porto a tentar declarar a independência da cidade e da região, há uma forte coesão social em Portugal, como aliás destaca várias vezes o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Do Minho ao Algarve.

Um nacionalismo de base regional, digamos, é impossível em Portugal?
Sim. Aliás, basta comparar com o Reino Unido, de onde sou originário e onde essa coesão está completamente a desmoronar-se, não apenas devido à ambição independentista da Escócia, mas também devido a outras questões levantadas sobretudo no norte de Inglaterra, cujo argumento histórico é que a região sempre foi carente de investimento económico por parte de Londres.

Esse é, exatamente, o argumento mais vezes utilizado pelo Porto quando se confronta com Lisboa.
Ainda recentemente houve um confronto público entre a Câmara do Porto e o Governo por causa da TAP. São questões históricas que continuam e que vão continuar na ordem do dia.

A identidade do Porto, então, existe mesmo, ou não passa de um cliché?
Claro que existe! O Porto é muito distinto de Lisboa. É como estar em Portugal sem estar em Portugal. O clima também influencia e tem impacto, chove muito mais do que em Londres (risos). O que não deixa de ser fantástico é que, apesar dessa forte identidade e de as pessoas frequentemente dizerem “primeiro sou do Porto e só depois sou português” ou que o “Porto é uma Nação”, o sentimento de pertença a Portugal é enorme.

Seria possível Lisboa eleger um presidente de câmara independente, como o Porto elegeu Rui Moreira por duas vezes?
Lisboa é uma fortaleza do PS, agora com Fernando Medina, antes com António Costa, João Soares e Jorge Sampaio. Não tenho a certeza que um presidente independente pudesse ser eleito, até porque a Presidência da Câmara de Lisboa funciona como catapulta para um cargo de relevo a nível nacional. Costa é primeiro-ministro, Sampaio foi presidente da República e Medina caminha para ser o próximo líder do PS. Embora no Porto também haja políticos em cargos nacionais, basta ver o exemplo de Rui Rio ou, antes, de Sá Carneiro. Aliás, Sá Carneiro foi um personagem fascinante. Ele é a grande “what if question” (“a pergunta do e se?”) de Portugal. Se não tivesse morrido, em 1980, que diferença teria feito no país? Quarenta anos depois não se conhece a verdade sobre o desastre aéreo que o vitimou em Camarate e é impossível responder se foi assassinado ou se se tratou de um simples acidente. Foi, sem dúvida, o grande “momento Kennedy” de Portugal.

“Gateway to the World” (“A entrada para o Mundo), o título do livro, foi uma expressão usada pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, durante uma visita ao Porto, em agosto de 1998. Porque é que a escolheu?
Essa expressão resume na perfeição o que é o Porto. A ideia de que é muito mais uma porta de entrada do que uma porta de saída é uma das razões que explica a atração dos que escolhem a cidade como base temporária ou permanente.

Este é um livro para estrangeiros que não conhecem bem (ou de todo) o Porto ou para os próprios habitantes da cidade se reencontrarem com as suas raízes?
Espero que ambos (risos). Há excelentes historiadores sobre o Porto, sem dúvida alguma. O meu principal objetivo foi escrever um livro envolvente usando diferentes tipos de fontes que ajudassem a explicar de forma interessante a História da cidade sob diferentes pontos de vista das suas influências.

Daí a ideia de apresentar o livro como que sendo um guia de viagem com muita História dentro?
Isso mesmo. Por isso, também procurei incluir mapas com zonas-chave da cidade e tudo o que abordo está lá apontado. A minha esperança é que as pessoas se revejam num livro de História que as atraia ao Porto.

J.K. Rowling revelou recentemente que nunca visitou a Livraria Lello enquanto viveu no Porto, quebrando assim como que um mito em torno da saga “Harry Potter”. Ficou surpreendido?
Nunca acreditei que ela tivesse visitado a Lello. Por uma razão muito simples: no início da década de 1990, quando viveu no Porto, por que razão haveria de frequentar a Lello se praticamente não eram lá vendidos livros em língua inglesa?

Em “Portugal saído das sombras” disse que Portugal é um país que parece falhar coletivamente enquanto povo mas que estranhamente tem várias personalidades em posições internacionais de topo. Como explica tal paradoxo?
Falta a Portugal conseguir aplicar o enorme talento coletivo que possui e que deveria ter mais projeção, nomeadamente além-fronteiras. Isto quando em simultâneo, a nível individual, possui fantásticas histórias mundiais de sucesso no desporto ou na política, como Cristiano Ronaldo, José Mourinho, António Guterres (secretário-geral da ONU) ou Durão Barroso, que liderou a Comissão Europeia. Aliás, é muito interessante que os políticos portugueses sejam muito bem-sucedidos quando saem do país.

O que os leva a atingir posições de topo?
Sejam do PS ou do PSD, os políticos são burocraticamente astutos e inteligentes. E aproveitam-se do facto de as grandes nações se cancelarem umas às outras e não quererem que outras grandes nações assumam cargos de relevo em instituições mundiais, como a União Europeia.