E agora? Como se tiram as pessoas de casa?

Conceição Ribeiro, 50 anos, recupera de um tumor maligno, não quer sair de casa (Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A proteção de uns é a proteção de outros. A despreocupação de uns é o medo de outros. Medo do contacto, do contágio, da doença. Medo de sair à rua. Desconfinar tornou-se um verbo comum e complexo e a normalidade é ainda uma miragem. Há receio e há esperança.

“O maior receio é as pessoas aproximarem-se muito de mim, faz-me confusão, não sabemos se somos ou não portadores do vírus.” Conceição Ribeiro tem 50 anos e está num grupo de risco. Não sai de casa, não quer sair. “Sei que se contrair o vírus tenho de ser logo internada, os meus tratamentos são muito recentes, o meu sistema imunitário ainda não está estabilizado.” No ano passado, em agosto, diagnosticaram-lhe um tumor maligno, um mês depois estava na mesa das operações. O organismo reagiu bem, terminou a quimioterapia em janeiro. Agora, com a pandemia, está mais resguardada do que alguma vez esteve.

Em casa há mês e meio, consultas desmarcadas, em teletrabalho como agente comercial, marido no mesmo regime, filho com aulas à distância que não sai de casa. “Tem receio por ele e tem receio por mim.” O marido sai quando é absolutamente necessário para compras e um ou outro afazer profissional. Cada saída, cada entrada, máximo cuidado. Calçado à porta, roupa para lavar a 60ºgraus, corpo no banho. O gel desinfetante sempre à mão, no móvel de entrada. “As compras chegam, são retiradas dos sacos, pousadas no balcão da lavandaria. É tudo desinfetado, até mesmo o que vem em papel.”

A família está orientada, um vizinho põe música das 20 às 21.30 horas durante a semana e das 20 às 22 horas ao fim de semana. Dança-se e conversa-se nas varandas, acendem-se velas, o jantar tem banda sonora. Tornou-se um ritual. O problema é quando olha para baixo, para uma das principais avenidas do centro de São João da Madeira. “Quando disseram que o pico já tinha passado, a rua voltou ao normal, fiquei em choque, parecia uma festa, muita gente à noite.”

Conceição tem mais receio de maio, do que de março e de abril. “Não estamos preparados, grande parte ainda não está preparada para este mês.” Máscaras na cara, luvas nas mãos, distâncias de segurança. Por vezes, pensa no regresso à vida antes da pandemia. “Ainda vai demorar um bocadinho para voltar à normalidade, será lentamente, aos pouquinhos, até ter a certeza de que está tudo bem.”

A família de Conceição Ribeiro toma todas as precauções necessárias para não contrair o vírus (Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Cátia Almeida tem 33 anos e mora na praia do Furadouro, em Ovar. Está grávida de quatro meses e tem uma filha de três anos que sabe que há um “bichinho mau” lá fora, mas que não percebe por que não pode visitar os avós ou brincar no parque infantil, que achou piada à máscara durante alguns segundos, que ainda terá de entender que o verão não será igual com o mar ao pé de casa. Não é fácil explicar, não é fácil entender.

“Não sabemos ao certo o que isto é, o poder de propagação é tão grande, tenho medo de sair com uma criança pequena”, conta Cátia, que foi despedida em março. O marido está em teletrabalho, é ele que trata das compras. Nada de superfícies comerciais, minimercado perto de casa com máscara e luvas, desinfetante nas mãos antes e depois de sair, produtos desinfetados, banho. “Nem todas as pessoas têm os devidos cuidados com a utilização das máscaras e com as medidas de segurança. Estamos em stresse com isso”, confessa.

Cátia está apreensiva, a filha não irá para a creche até ao final do ano letivo. Não é tanto o estado de graça que a faz viver com o coração nas mãos. “Mesmo que não estivesse grávida teria os mesmos receios. Não é só por mim, é por eles. Apesar de acreditar que a situação começa a melhorar, que as pessoas têm os devidos cuidados, sinto sempre bastante receio.” A gravidez é acompanhada em teleconsulta, a meio do mês tem a ecografia morfológica no Porto. Se não for desmarcada, irá sozinha de carro, ligará quando estiver no estacionamento, aguardará indicação para entrar.

Cátia vive no concelho de Ovar, que esteve isolado do resto do país durante um mês, confinado numa cerca sanitária, com risco elevado de contaminação comunitária. Percebeu a medida de calamidade pública, mas isso pesou nos seus medos. “A situação era demasiado grave, o número de casos era muito grande, relativamente à quantidade da população. Foi assustador, todos os dias morria uma pessoa, e uma vida é uma vida.” O regresso à normalidade é uma incógnita na sua cabeça. “Até podermos voltar à vida normal vai demorar.”

Cátia Almeida, 33 anos, e o marido Nélson. A gravidez do segundo filho exige todos os cuidados
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Amanda Graçoeiro, 33 anos, já decidiu. Com ou sem estado de emergência, com mais ou menos medidas restritivas, o regresso a uma certa normalidade não será, na sua vida, antes de junho. Nessa altura, resolverá se os filhos voltam à creche, ponderando riscos, perigos, a situação do momento. “Vou fazer a mesma rotina, não estou a pensar andar por aí como se nada se passasse, com total liberdade.” Vai manter-se em casa. “Todos têm uma maneira diferente de ver a situação e de se comportarem. Eu vou proteger os meus filhos, não vou andar na rua.”

Está confinada há 55 dias, com namorado, e dois filhos pequenos, um menino de ano e meio que não percebe o que se está a passar, e uma menina de cinco que já ouviu explicações dos porquês de a família não sair de casa na praia da Barra, Ílhavo, junto ao mar. Uma ou outra voltinha rente à casa, compras essenciais, nada mais.

Amanda não está a trabalhar, a empresa de eventos está completamente parada sem data para voltar à atividade. Continua atenta ao que se passa no país e no Mundo e fica preocupada quando vê gente nas praias, esplanadas e cafés cheios. “O que me mete mais confusão é que não há respeito por aquilo que é pedido, distanciamento social. As pessoas continuam a ir ao supermercado sem máscaras, sem luvas, não têm o mínimo respeito.”


Amanda Graçoeiro, 33 anos, já decidiu – não sai de casa antes de junho. E nessa altura decide se os filhos voltam para a creche
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

A falta de cuidados, na sua opinião, custa caro à saúde, ao país. Não entende os abusos. “É algo que se transmite muito facilmente, se continuam a dar voltinhas, os nossos números vão aumentar.”

“Estou fechada em casa há muito dias, não é fácil, mas tenho dois dedos de cabeça. Tenho quem proteger, proteger a minha família.” Depois da tempestade, deverá vir a bonança. Amanda confessa que consegue ver uma luz ao fundo do túnel. “De qualquer forma, as pessoas têm de ter um bocadinho de paciência.”

A vulnerabilidade como motor de mudança

A Europa começa a levantar algumas medidas e Portugal não é exceção. O pequeno comércio reabre as portas, os alunos do 11.º e 12.º anos regressam à escola, as creches preparam-se para voltar a funcionar. Seja como for, o primeiro-ministro avisou que atenuar restrições não é voltar à normalidade. E deixou claro que se o desconfinamento correr mal, o país dará um passo atrás.

O medo e a insegurança imperam, mas, aos poucos, os comportamentos alteram-se, as normas impõem-se, os hábitos entranham-se. “A vulnerabilidade das pessoas é um grande motor para a mudança comportamental”, defende Isabel Rocha Pinto, psicóloga social. As práticas vão mudar, mesmo que no início seja estranho.” E há um elemento que se altera: o julgamento social. “A noção de crime vai mudando, uma pessoa infetada que vai para a rua é quase vista como uma criminosa.”

A pandemia não passou, os receios são legítimos. “Não queremos, para já, tirar muita gente de casa, não é essa a ideia. A ideia é que as pessoas possam retomar, de forma gradual e faseada, algumas atividades”, refere Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. Tirar gente de casa, aos poucos, com distanciamento social, etiqueta respiratória, máscara, higiene das mãos. É necessário proteger os mais vulneráveis, insistir numa comunicação assertiva. Confiança, por um lado, cautela, por outro. “Não será fácil retomar o que era a nossa vida há três ou quatro meses”, comenta.

A vida de Hugo Silva, 37 anos, administrativo no Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, entidade religiosa ligada aos jesuítas, em Braga, mudou há mês e meio. Está em teletrabalho, é a primeira experiência, está a gostar, não se importaria de continuar.

“Criei um espaço em casa que não tinha e estou tão concentrado que nem me lembro que estou aqui, não sinto que por estar em casa posso relaxar. Estou sentado, em frente ao computador, desligo a televisão. Nem de chinelos fico, é como se fosse para a rua. A única coisa é que ando de fato de treino.” E não se expõe aos humores do tempo no curto trajeto que fazia a pé para o trabalho. “No inverno, está quentinho, no verão está fresquinho, sem recorrer ao ar condicionado.” Hugo não vê desvantagens. Não fica mais tempo na cama, não se instala no sofá, não anda de pijama. “Cumpro o horário normal e o trabalho está a correr quase igual.”

Hugo Silva, 37 anos, administrativo, está em teletrabalho há mês e meio, e não se importaria de continuar
(Foto: Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

A normalidade tornou-se um conceito estranho. A Europa e o Mundo pensam no complexo processo de desconfinamento. Há poucas semanas, um grupo de psicólogos sociais belgas colocou um relatório em cima da mesa dos políticos. Os especialistas reuniram vária literatura e sustentam que a saída gradual de uma situação de confinamento baseia-se no sentimento de identidade coletiva, como suporte de uma ação coletiva contínua, necessária, prolongada no tempo. Destacam três ingredientes para uma ação coletiva sustentável e eficaz: uma causa comum, as pessoas precisam de se proteger para proteger os outros e vice-versa; o sentimento de eficácia coletiva que implica rastrear publicamente os resultados das medidas adotadas, o que é essencial para a motivação e comprometimento das populações; e as emoções coletivas que impulsionam a ação de todos.

“As autoridades públicas que consideram os cidadãos incapazes de entender a situação, ou que não querem comportar-se de maneira responsável, correm o risco de parecerem paternalistas e provocam desconfiança e desmembramento da causa comum”, lê-se no relatório. Desconfinar tornou-se um verbo comum. Os psicólogos belgas avisam que há fatores a ter em conta como atitudes de proteção, em vez de coerção e controlo, clareza nas normas comportamentais para preservar a saúde coletiva. Comunicar com eficácia, comunicação sintonizada para todos os grupos da sociedade, dos mais novos aos mais velhos, solucionar problemas, evitar falhas no futuro para manter a confiança.

O sentimento de identidade coletiva enfrenta, porém, duros desafios como estigmatizar doentes, excluir e discriminar grupos sociais. “A tarefa das autoridades não é minar ou ignorar as diferentes identidades de grupo, mas garantir que são vistas como compatíveis com o objetivo comum.”

É a vida que muda, é o trabalho que se reorganiza. Teresa Melo, 47 anos, está em teletrabalho, e assim poderia continuar. Não é a primeira vez. Há mais de 20 anos também esteve nesse regime, numa empresa da área da informática. Agora, como uma das fundadores e presidente da Associação de Apoio à Criança Interativa, com sede em São João da Madeira, está em casa a trabalhar. “Acabo por ter mais disponibilidade de tempo em qualquer hora.” Para atender telefonemas de pais, conversar com técnicos e colaboradores da associação, ajudar colegas, dar assistência aos filhos de 19 e 13 anos, que também estão em casa. Mantendo rotinas, o tempo parece-lhe que rende mais.

Teresa Melo, 47 anos, gosta de estar em teletrabalho. Já o tinha feito há duas décadas.
Não se importaria de continuar
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

A associação fez ajustes por forças das circunstâncias. Não há idas às escolas, não há debates e conferências, as sessões de relaxamento para pais estão suspensas. De resto, tudo normal, consultas online, apoio a crianças, adolescentes, jovens, pais por telefone ou videoconferência. Se há ferramentas em casa, o teletrabalho não é um problema. Estes tempos, na sua opinião, “podem ser uma oportunidade para as pessoas pensarem em soluções alternativas”. A mesa da sua sala sempre foi muito versátil. Refeições, espaço de conversa, mini escritório quando é preciso. As casas transformaram-se em escritórios, os escritórios estão vazios. E a sociedade adapta-se, reorganiza-se, reergue-se. Sair de casa leva o seu tempo.