Jorge Manuel Lopes

A fonte, a estátua e a modernidade

Algo bastante maior do que uma gripezinha interferiu com a celebração do centenário do nascimento de Federico Fellini. Por cá, as comemorações foram reagendadas para agosto, mês de arranque do programa Essencial Fellini, que levará à reposição em sala de seis filmes do realizador italiano. O programa inclui a passagem de “A estrada” (de 1954, exibido a partir de 13 de agosto), “Fellini 8” (1963, 20 de agosto), “Julieta dos espíritos” (também de 1963, 27 de agosto), “Os inúteis” (1953, 3 de setembro), e “A voz da lua” (1990, 10 de setembro).

Mas antes, no arranque a 6 de agosto, vê-se “La dolce vita”, uma corrente de ar de modernidade, mas também de surrealismo, humor e tragédia, chegada em 1960 e com estadia prevista até à eternidade. Os dias e noites que parecem esbater-se num contínuo sem repouso, numa cidade veloz e ruidosa (Roma) que tem a espessura dramática de uma personagem de carne e osso, tudo embebido numa cultura da celebridade em que o jornalista Marcello Rubini, interpretado por Marcello Mastroianni, é testemunha e facilitador: o quadro faz idêntico sentido neste ponto do século XXI como na Europa em renascimento pós-Segunda Guerra Mundial.

Com uma narrativa solta q.b., rasgam-se espaços em “La dolce vita” para a criação de momentos icónicos na história do cinema. Envolvendo diversas combinações a partir de elementos como a fé, o erotismo, motorizadas, festas, crueldade, óculos de sol, homicídio. Visto, não se esquece: a estátua de Cristo que voa de helicóptero sobre a capital italiana, logo a abrir; Anita Ekberg na pele de uma outra atriz, Sylvia, entrando nas águas da Fontana di Trevi; a manhã de ressaca na praia e a criatura incerta que dá à costa nas redes dos pescadores. Uma gloriosa insónia de filme.