Lince ibérico: resgate com final feliz

O dia-a-dia de biólogos e veterinários em Silves e Mértola, as capitais portuguesas do resgate de um animal que quase se extinguiu. Após duas décadas de muito trabalho, o felino selvagem tem todas as condições para voltar a dominar um território que já lhe pertenceu.

Entre Silves e Mértola distam cem quilómetros. Dois pontos num mapa na luta pela recuperação do lince ibérico, um felino selvagem que quase se extinguiu. Só na região de Mértola há mais de uma centena de animais e o cenário continua a melhorar: neste ano, já nasceram 46 linces naquela zona alentejana.

Por trás, uma equipa de biólogos e veterinários trabalha na preparação destes animais para o dia em que serão libertados na natureza. São 16 cercados, forrados a arame, com câmaras de vigilância que controlam, 24 horas por dia, todos os movimentos dos felinos.

Do topo de um dos pontos da Herdade das Santinhas, no interior de Silves, aquilo que aparenta ser uma prisão de alta segurança, é, na verdade, uma espécie de cofre genético, responsável por um dos mais bem-sucedidos projetos de recuperação animal do Mundo.

O Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico (CNRLI) está instalado entre as albufeiras da barragem do Funcho e do Arade, e conta com 30 exemplares desta espécie que, no início do milénio, quase foi apagada do mapa, com menos de cem animais na Península Ibérica.

O centro português integra uma rede Ibérica, com mais quatro centros em Espanha, nas zonas da Andaluzia, Extremadura e Castilla la Mancha. “Destes centros, saíram para liberdade 248 exemplares. Só de Silves, foram enviados para a natureza 69 linces”, sublinha Rodrigo Serra, diretor do CNRLI e uma das pessoas que estão no projeto desde o início. “Quando começámos, em 2003 e 2004, havia apenas 25 fêmeas reprodutoras em todo o Mundo. O animal estava em risco de desaparecer”, acrescenta.

Preservar a variabilidade genética

Em outubro de 2009, chegou a Silves a fêmea Azahar, vinda do Zoobotânico de Jerez de la Frontera, Espanha. Nos meses seguintes, foram introduzidos mais 15 animais reprodutores. Uma solução de fim de linha para impedir que a espécie caísse em extinção. Ao longo de quase uma década, os números multiplicaram-se de uma forma favorável. Só em Silves nasceram 112 linces, sendo que 69 foram colocados em liberdade. Seis deles neste ano.

Rodrigo Serra é diretor do CNRLI e uma das pessoas que estão no projeto desde o início.

Por isso, a atenção do CNRLI, à semelhança dos parceiros espanhóis, já não está só centrada em fazer crescer o número de exemplares deste animal. “Estes centros são responsáveis por 98% da variabilidade genética que existe e que continua muito sensível devido ao número muito reduzido de animais que existiam quando arrancámos com o projeto”, explica.

“Quando começámos, em 2003 e 2004, havia apenas 25 fêmeas reprodutoras em todo o Mundo. O animal estava em risco de desaparecer”
Rodrigo Serra

E é, de facto, a genética o grande valor destes centros, que funcionam como uma arca de Noé do lince ibérico. “É a genética que define que animais podem acasalar. Não podemos fazer emparelhamentos entre parentes. Temos de garantir que não há consanguinidade. Posteriormente, o local onde são colocados na natureza também é definido pela genética. Na mesma área não podem ser colocados pais e filhos”, aponta o especialista, que trabalhou noutros projetos de recuperação animal, como a do leão, no Botsuana. “A missão principal deixou de ser a produção de um elevado número de animais. Passa, agora, por garantir uma genética equilibrada, funcionando como um banco contra a extinção”, destaca.

Um “big brother” 24 horas por dia

Com Rodrigo trabalha um grupo de biólogos e veterinários, 24 horas por dia, sete dias por semana, sem pausas, a monitorizar o que se passa em cada um dos ecrãs instalados na sala de controlo. É através desses monitores que os veterinários sabem quando nascem os linces, se estão saudáveis e se o treino para a liberdade decorre dentro do protocolado.

Cercados em Silves, onde os linces são preparados para serem colocados na natureza.

Marta Cabaça, que começou a trabalhar como voluntária no CNRLI em 2015, é um dos rostos da equipa. “A nossa principal função é avaliar o comportamento dos animais para perceber se estão doentes e se desenvolvem as aptidões necessárias para depois serem colocados em liberdade”, especifica a bióloga.

“São 30 animais e câmaras em 360 graus que captam todos os movimentos dos linces, o que nos obriga a ter uma capacidade de multitasking muito evoluída”, refere. As câmaras estão camufladas, para que os pequenos felinos não tomem conhecimento da sua presença e, assim, ajam de forma natural, demonstrando vulnerabilidades que esconderiam, caso as detetassem. “São animais selvagens que, quando dão conta de um elemento estranho ou da aproximação de uma pessoa, tendem a esconder as fragilidades”, justifica.

Apesar de todo o protocolo que têm que seguir, a rotina não existe e o trabalho varia ao longo do ano. Em março, nascem as crias e o ponto principal passa por perceber se são saudáveis. Durante seis ou sete meses vivem lado a lado com as progenitoras e depois começam a desenvolver as aptidões que os levarão, ou não, para a vida selvagem. “Temos que perceber se conseguem caçar e competir pela presa. São habilidades que vão precisar quando forem devolvidos à natureza”, indica.

Assustar os animais para os preparar

É nos cercados que os animais nascem em cativeiro e se preparam para, depois, rumarem à liberdade. São como jaulas gigantes, com mil metros quadrados, que reproduzem, o melhor possível, as características da floresta mediterrânea. Até a forma como o coelho, a principal presa do lince, é colocado no interior do cercado é feita para simular o habitat natural.

Marta Cabaça é uma das biólogas que diariamente monitorizam tudo aquilo que os linces fazem. Várias câmaras acompanham os animais, para que os técnicos possam registar como os felinos se comportam ou se estão doentes.

“Recebem a presa viva, por um sistema de túneis subterrâneos, para que não se apercebam da chegada do coelho. É assim na natureza e é desta forma que fazemos aqui. Além disso, a presa é colocada neste sistema sem qualquer organização temporal, para que eles se habituem a disputar com outros animais o coelho. Todos estes comportamentos de disputa são chave na avaliação que é feita para decidir se o lince pode ser colocado em liberdade”, faz notar Rodrigo.

A localização do centro, longe de qualquer grande cidade ou aglomerado populacional, também não é ao acaso. Neste centro de treinos para a liberdade há outro elemento chave: a relação com os seres humanos. “O contacto com o Homem deve ser o mais reduzido possível para que, quando os animais cheguem à natureza, se afastem das pessoas. Não podem associar o alimento ou qualquer outro elemento ao humano porque, na natureza, não vai ser assim”, revela o responsável.

É, por isso, que os cercados estão cobertos, para que os animais tenham pouco contacto com os tratadores. De duas em duas semanas, um dos especialistas entra nessas jaulas com o único propósito de assustar os linces. “A sobrevivência destes animais depois de serem libertados é de 70%. É superior ao que todos esperávamos”, conclui.

“São animais selvagens que, quando dão conta de um elemento estranho ou da aproximação de uma pessoa, tendem a esconder as fragilidades” Marta Cabaça

Despistadas as doenças genéticas e outros problemas de saúde, e avaliado, de forma positiva, o comportamento, de acordo com o definido com os centros espanhóis, o animal está preparado para seguir viagem para a natureza. Mas nem todos os animais que nascem no centro conseguem atingir o objetivo.

“Os animais excedentes, que não reúnem as capacidades técnicas para sobreviver na natureza, ou que têm problemas genéticos que podem comprometer a saúde de outros exemplares, servem como embaixadores do projeto. São enviados para jardins zoológicos para sensibilizar a população sobre este animal”, assinala Rodrigo.

Do cativeiro ao regresso à liberdade

Dos centros de reprodução, os linces podem rumar para Espanha, para as zonas de Castilla La Mancha, Extremadura, Guarrizas e Guadalmellato. Em Portugal, é a região do Vale do Guadiana, nomeadamente os concelhos de Mértola, Serpa e Castro Verde, que recebe os animais.

Pedro Sarmento utiliza uma antena para localizar os animais quando já estão na natureza.

O processo de reintrodução do lince na natureza, em solo português, iniciou-se no final de 2014. “O primeiro casal foi colocado num cercado de adaptação em Mértola, que foi aberto em 2015, deixando os animais em liberdade”, recorda Pedro Sarmento, biólogo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e um dos pioneiros no trabalho de recuperação da espécie que passou de criticamente ameaçada para ameaçada de extinção.

Atualmente, só nesta zona vivem 105 animais em liberdade, mais do que aqueles que existiam em todo o Mundo quando arrancaram os projetos de reprodução e reintrodução do animal na natureza. Segundo o especialista, entre Portugal e Espanha, em liberdade, existem mais de 650 exemplares. Seis vezes mais do que no início do milénio.

Os censos deste ano vão atribuir os números oficiais, mas as perspetivas são amplamente positivas. “É possível que, dentro de poucos anos, o lince ibérico passe a ter estatuto de espécie vulnerável e também é possível que, mais umas décadas, deixe de estar ameaçado e de ter qualquer estatuto de ameaça”, acredita.

Capital da caça e abrigo

Em Mértola, entre herdades com oliveiras e sobreiros, os sinais de trânsito em que se vê a figura de um gato com as orelhas bicudas não passam despercebidos a quem segue nas estradas. O concelho, que até nem tem muitos registos históricos do animal, é o habitat de referência em Portugal daquele que ainda é o felino mais ameaçado do Globo.

“É possível que, dentro de poucos anos, o lince ibérico passe a ter estatuto de espécie vulnerável”
Pedro Sarmento

“Mértola nunca foi uma região histórica de linces. Há outros concelhos, como Barrancos, onde o lince existiu. Mas Mértola tem um aspeto essencial para o estabelecimento e fixação do animal: o coelho”, realça Carlos Carrapato, biólogo do Parque Nacional do Vale do Guadiana e um dos elementos que diariamente acompanha a adaptação do lince ibérico à natureza.

Carlos Carrapato, biólogo do Parque Nacional do Vale do Guadiana, Pedro Sarmento, biólogo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, e Nuno Neves, veterinário que acompanha os trabalhos em Mértola.

Perto de São João dos Caldeireiros, na Herdade das Romeiras, onde foram libertados os primeiros animais em 2015, a presença do coelho bravo é bem notória. Os especialistas entram com os jipes nos terrenos cheios de vegetação. O barulho dos motores é o tiro de partida para que dezenas de coelhos, que correm lado a lado com veados e gamos, transformem a paisagem alentejana numa espécie de savana, rica em vida animal.

“Este tipo de habitat, à partida, nem seria dos mais indicados para o lince. Não tem tantas sombras como o normal, mas tem muitos coelhos”, diz Pedro Sarmento, que acredita que “as áreas a 50 quilómetros, onde estão instalados linces e que tenham coelhos, serão ocupadas por estes felinos em poucos anos”.

É a abundância de coelho, rico em nutrientes, que permite que as fêmeas se mantenham próximas das crias, evitando que os animais se arrisquem em zonas mais perigosas, como as estradas. Só na estrada nacional 122, a cerca de dez quilómetros de Mértola, em maio de 2018 e no último mês de janeiro, foram mortalmente atropelados dois animais, aumentando para quatro o número de mortes por atropelamento no Vale do Guadiana, desde 2015.

“Tudo gira à volta do coelho. Todas as estratégias para o lince devem ter por base o coelho, e é mais fácil meter linces onde há coelhos do que coelhos onde há linces”, reforça Carrapato, que destaca o papel da atividade cinegética neste processo: “Os coelhos têm aqui o seu solar, uma zona de refúgio, e isso apenas existe porque os gestores cinegéticos trabalham este habitat. É esta relação da presença humana no território que faz com que o coelho vingue”.

O equilíbrio entre ser humano e animal selvagem

Nem sempre a relação aconteceu de forma equilibrada. “O regresso de um predador é visto, por alguns, como algo belo, idealizado, uma oportunidade de turismo. Por outros, é visto como um animal sem grande utilidade, que até pode ser um competidor”, considera Margarida Fernandes, técnica do ICNF e especialista na relação entre os humanos e os animais selvagens.

“Um dos problemas apontados pelos habitantes locais foi o possível decréscimo do coelho-bravo, a principal presa do lince”, constata. Ainda assim, a especialista defende que “a vida comum entre o lince e os humanos, que coexistiram durante milhares de anos”, é possível. “O equilíbrio entre os humanos e a reintrodução está em curso.”

João Madeira é responsável por uma propriedade, localizada em Mértola, que conta com centenas de ovelhas. “O dia a dia das pessoas não mudou muito com a chegada do lince. Houve algumas reservas porque a população tinha receio de que a presença de um novo predador não fosse compatível com as explorações agrícolas. Mas foi tudo conduzido de forma natural”, observa.

Para o empresário, a chegada deste predador até pode ser benéfica e dá o exemplo de um outro proprietário que, durante anos, sofreu com a presença das raposas, que dizimaram dezenas de borregos na região. “Houve um lince que se instalou junto da sua propriedade e as raposas desapareceram porque foram afugentadas pela chegada do felino”, diz.

Além disso, o facto de Mértola estar a ser alvo deste projeto “tem trazido pessoas e aumentado o turismo na região”. “O lince ocupa um papel de superpredador dos ecossistemas mediterrâneos e os humanos beneficiam de um equilíbrio natural advindo da presença do lince”, sustenta Margarida Fernandes.

Vigilância e recolha

O processo de monitorização destes animais não termina quando chegam à natureza. Tal como em Silves, em Mértola estão instaladas dezenas de câmaras em locais estratégicos como lagos, onde os felinos vão beber, ou em terreno povoado pelo coelho, onde o lince caça.

João Madeira é proprietário de uma exploração agrícola em Mértola e destaca o sucesso da chegada do lince à região.

Os registos são depois recolhidos por Pedro Sarmento, que passa horas em frente ao computador a analisar os milhares de frames captados por estas câmaras. “É um processo que permite saber muita coisa. Quando largamos um animal é incerto como se vai adaptar”, partilha.

“Os linces passam por uma experiência traumática, que é o transporte, e vêm para um ambiente novo. Já tivemos animais que passaram quatro dias sem se mexerem e esta é uma das melhores formas de os controlarmos”, reconhece Sarmento. Além das câmaras, os colares que alguns dos animais têm ao pescoço enviam sinais que permitem localizá-los no meio da natureza.

De antena na mão, seguindo os “bips” de um recetor, Pedro Sarmento percorre a área em busca dos linces. “Há semanas em que os vejo quase todos os dias e outras em que é raro. Mas todos estes elementos são importantes, até para definirmos os locais que eles já ocupam.”

No final de 2018, foi feita uma forte incursão nas áreas do lince, precisamente para saber como e onde estão. Foram colocadas 16 jaulas no território ocupado, com um coelho na parte superior, de forma a atrair o felino. “Tínhamos estabelecido um limite mínimo de dez exemplares e, no final, conseguimos capturar 13! Fomos a todas as áreas recolher adultos e crias, para ter uma amostra representativa”, explica Nuno Neves, veterinário, que acompanha Carlos Carrapato e Pedro Sarmento nos trabalhos de Mértola.

“Temos que passar por um grande protocolo para que tudo corra bem. Depois, fazemos os testes na clínica no centro de Mértola”, salienta o veterinário. “Há doenças que podem dizimar o projeto e todo o trabalho que aqui é feito”, alerta Nuno Neves, que descreve o esforço que tem sido feito para, por exemplo, evitar o contágio dos linces pelos gatos.

“Há muitos gatos que não são vacinados. Em Espanha, houve uma situação muito complicada com a FeLV, a leucemia felina. Temos feito testes aos gatos vadios porque os linces apanham muitas doenças que são transmitidas por outros felinos”, destaca.