Rui Cardoso Martins

“La receta exitosa”

Ilustração: João Vasco Correia

Aconteceu uma coisa tão ambiciosa nas expectativas justiceiras, mas tão pífia de resultados, que alguém deverá rever o assunto. O certo é que Belmiro se via agora no banco dos réus do tribunal, acusado de tráfico de estupefacientes.

Com o olhar pacífico cravado nas paredes, gorducho e calado — mas estaria nervoso — esperava a perigosa sentença para traficantes de droga. Meses antes, Belmiro estava a uma esquina de Lisboa a fumar um cigarro de haxixe — ou como diz a justiça, “o vulgo charro” — quando passou nas mesmas coordenadas geográficas globais, algures entre 38º 42’ 44 N/ 9º 8’ 42 O — e, ainda com mais rigor, do mesmo lado da calçada portuguesa de Belmiro, um tipo que lhe pediu:
— Ei, dás-me uma passa?

E Belmiro deu. Dar uma passa é toda uma cultura em aberto. De cigarros de tabaco ou do resto. Há pessoas com coração que oferecem cigarros como quem dá pãezinhos a famélicos, e fazem-no com alegria e humanidade, outras há tão forretas que são capazes de responder (quando eu fumava, há vinte anos, recebi esta resposta):
— Eh pá, desculpa, só tenho sete…

Mas Belmiro passou a passa, o outro aspirou e inalou e a polícia caiu-lhes em cima, saltando do escuro.
Belmiro tinha com ele mais de dez doses consideradas diárias (segundo critérios científicos de quantidade há muitos anos estabelecidos) e, portanto, o seu consumo entrava na categoria de crime.

A quantidade de droga talvez explicasse a barriga, a gordura debaixo do queixo, talvez Belmiro seja desses casos que ganham fome com o haxixe, um ser sujeito a olhos vermelhos e marabuntas de lobo, capaz de comer despensas de chouriço inteiras.

Agora, meses depois, Belmiro ouvia a sentença no tribunal. O juiz estava entre o estupefacto e o cómico. Por mais que olhasse para a acusação de tráfico adiantada pelo polícia e pelo Ministério Público, não via como era possível:
— Partilhar um charro entra na categoria de tráfico?…
perguntava-se o juiz, e logo se respondia, abanando a cabeça como se falasse de uma beata apagada com a bota.
— Atender a um pedido de alguém que passasse para que lhe desse uma passa… mas sem vender… Na realidade, isto reduz-se à partilha de estupefaciente.

E vou poupar-nos ao rol de doutas justificações do juiz, do artigo tal à alínea não sei quantas, e pelo meio frases directas como “não cedeu de facto uma parte do que tinha com contrapartida monetária”, e que “punir o arguido como traficante por ter cedido a um pedido” e, finalmente, “seria inadequado condená-lo por crime de tráfico de menor gravidade”.

Pelo consumo (a tal quantidade superior a dez doses diárias) ouviu Belmiro com a sua cara negra e assoprada, terá de pagar 80 dias de multa a seis euros, o que dá 480 euros ou 50 dias de prisão. Sobre a absolvição do tráfico:
— Esta decisão não é pacífica, há outras interpretações…
O juiz citava outros países, França, Espanha, mas ficou na dele:
— Uma pessoa está num canto e alguém passa e diz ‘pá, dá-me uma passa”, e a pessoa dá uma passa e é punido como traficante, é desadequado!

E é curioso ter falado em Espanha porque esta semana saiu no jornal “El País” um artigo sobre os 20 anos exactos (Maio de 1999) da alteração da política portuguesa de combate e tratamento da toxicodependência. “La Receta Exitosa”, dizia o título do maior jornal espanhol, com vários argumentos: ao deixar de tratar os drogados como delinquentes, passando-os a doentes (programa de troca de seringas, metadona, etc.), Portugal baixou radicalmente os níveis de dependentes de heroína e cocaína e a contaminação com o vírus HIV.

E foi assim que Portugal se transformou num “país de referência”, um “exemplo mundial na regulação das drogas.”

Não sei que tipo de patrulha da noite saiu e prendeu Belmiro, o homem que ofereceu uma passa. Nem o que tinham os polícias fumado.

 

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.