Eulália. Esta mãe é só amor, toda ela é coração, esta mãe é um leão

Foto: Igor Martins/Global Imagens

Texto de José Miguel Gaspar

As palavras magoadas desfilam no ecrã do computador a refletir o azul e branco do Facebook nos óculos dela. Ela está numa sala escura. Não são palavras bonitas, são de uma mãe para o seu filho, são palavras de terror.

“Estou aqui muito triste e doente, muito desiludida contigo. Atraiçoaste-me! Aceitar a tua profissão, nunca! Os teus comentários porcos, não! Estás cada vez mais porco, mais destemido! Que a morte venha, não posso mais, estou farta de sofrer”, e as mensagens dela para o filho no Messenger do Facebook, que ali continuam sem resposta – “porque não foste capaz de me dizeres?” – passam em triste scroll no computador enquanto ouvimos a respiração pesada e parada dela.

Depois vemos uma cena muito agitada e irreal: o jovem ator porno gay português Fostter Riviera de peito nu, grandes botas da tropa, a vestir umas asas negras com amarras apertadas de couro. Ele está a preparar-se para filmar, fala com outro rapaz, é o seu co-protagonista, ficamos depois a saber, ele explica-lhe como vai ser e vai ser tudo bastante cru: “Tu chupas, depois és fornicado e depois já acabou”. E ele ri-se e a seguir começa a rodagem de mais uma produção Timtales que já não veremos porque só os vamos ouvir a arfar.

É surpreendente o começo de “Até que o porno nos separe”, documentário de 2018 estreado no passado mês de maio, da autoria de Jorge Pelicano, o ex-cameraman da SIC que se transformou em documentarista das denúncias e da extinção (“Ainda Há Pastores”, 2006; “Pare, Escute, Olhe”, 2009; e “Pára-me de Repente o Pensamento”, 2014) e que se deixou atravessar desta vez por uma imensa revelação.

É a sua protagonista, Eulália, quem o explica: “O Jorge [Pelicano] entrou cá em casa e ficou logo no meu coração. Há pessoas assim. Ele queria contar a história de dois atores pornográficos, um homem e uma mulher, e estava à procura de pessoas que contassem essa história da perspetiva dos pais deles, como é que eles viam os filhos, como é que eles lidavam com aquilo tudo, como é que os seus filhos estavam a ser. Era uma história sobre aquilo que as pessoas querem esconder. Ora, quando ele percebeu que nós não queríamos esconder nada, que queríamos era falar, que queríamos mostrar tudo, que isso é que pode ajudar, aí ele mudou o filme todo e o filme passou a ser sobre mim e o meu filho, o filme é só sobre nós”.

Não é só, sabe bem Eulália Almeida, 67 anos, portuense nascida e criada, mãe de Sydney Almeida, 25 anos, mais conhecido como Fostter Riviera, “o mais premiado ator pornográfico homossexual português”, o filme é sobretudo sobre algo muito maior, é sobre o que é rigorosamente essa inefabilidade que é o amor de mãe. Como na peça de Brecht de 1941 sobre valores, expectativas e perceções durante uma guerra, Eulália, um coração em carne viva a bater para sempre fora do peito, é aqui a mãe coragem e o seu filho.

Eulália Almeida em casa, no Bairro de S. Tomé, em Paranhos, no Porto, com o gato Kiko, um confidente de todas as horas. (Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Quando lhe contaram, desmaiou

Esta imagem nunca a vimos. São 3.25 horas da madrugada, ela lembra-se com precisão, a escuridão da sala de estar da sua casa no bairro de blocos camarários de S. Tomé, freguesia de Paranhos, cidade do Porto, só está iluminada pela luz branca azulada do ecrã do computador. O marido dela dorme, o gato gordo Kiko dorme, o bairro inteiro de luzes amarelas está a dormir, e Eulália vai clicar numa seta, a imagem abre-se, ela vai vê-la e nunca mais a vai conseguir apagar.

Ela resume tudo de uma forma bastante crua: “Quando abri aquilo e a imagem começou a dar nem queria acreditar, meu Deus!, ó meu Deus!!, é mesmo o meu Sydney, ó Kiko, é ele?, mas como pode ser ele?!”, perguntava ela ao gato a dormir, ela sozinha na grande escuridão, as lágrimas roliças a cair. “O que é que eu vi naquele ecrã do computador? O meu filho completamente nu, só de botas de couro, a meter uma seringa na pila. O que é que faz uma mãe com isto?”, pergunta Eulália a lacrimejar.

“Quando abri aquilo e a imagem começou a dar nem queria acreditar, meu Deus!, ó meu Deus!!, é mesmo o meu Sydney, ó Kiko, é ele?, mas como pode ser ele?!”

Era ele: Fostter Riviera – “o nome vem de dois lados”, explicará ela mais tarde, “Fostter por causa de uma artista que por acaso é lésbica e eu e o meu filho gostamos muito dela, a Jodie Foster, e Riviera porque o meu filho veio da Riviera francesa, é adotado, foi-me dado com cinco meses” – é realmente Sydney Almeida e já fez mais de 300 filmes como ator pornográfico gay português.

Isto foi no dia a seguir a Eulália ter desmaiado. Isto foi há cinco anos. “Foi assim: as vizinhas já me andavam há um tempo a chatear, a falar de coisas que eu não percebia, perguntavam-me pelo meu filho que elas conheciam, que era uma joia, que era um amor, mas perguntavam se eu já tinha falado com ele, há quanto tempo é que não o via, ele tinha emigrado para Colónia, na Alemanha, foi quando fez 18 anos, há uns tempos que não me falava, e eu não entendia. Depois foi uma vizinha que me disse de caras: ó Eulália, olha que o teu filho é ator pornográfico e vê-se tudo na internet! Não acreditas? Queres ver? E eu que estava na casa dela e aquilo estava-me a chatear, lá fui ver. E não queria acreditar. Era mesmo ele. Com outro homem. E fazia aquelas coisas que fazem os homens gays. Foi um choque. Só vi um segundo ou dois porque depois não me lembro de mais nada, apaguei, caí redonda no chão da sala dela, desmaiei.”

O que se passou a seguir é confuso e muito sofrido e Eulália só se lembra “de nessa noite estar às voltas na cama, a rebolar para aqui, para ali, os olhos arregalados no escuro, a cabeça a estourar”, e sem conseguir dormir. “Àquela hora da madrugada que lhe disse, levantei-me, liguei o computador e vi tudo sem parar, só perguntava ao meu Kiko, o meu companheiro, o meu gato, mas ele estava a dormir, é ele, ó Kiko? E chorei que me perdi, uma hora, duas horas, três, quatro, cinco horas que chorei sem parar”. Depois Eulália passou uns tempos doente. “Muito doente, caí na cama, não fazia nada, só deprimia, não queria ver ninguém, nada de nada, ninguém, só queria era morrer”.

E Sydney, que há meses não dava de si, não respondia às mensagens, não atendia o telefone, não queria saber da mãe. “O meu Sydney que quando eu fiz 65 anos tanto me magoou, tanto porque nem sequer me deu os parabéns, nem sequer me ligou, ele soube depois que eu estava caída na cama e foi aí que me telefonou. Eu estava num estado tal que só me lembro de o ouvir dizer: então, velhota, que se passa, está doente? E aí eu perdoei-lhe logo tudo, tudo, não queria saber, ele estava ali a falar comigo, ele preocupava-se comigo, ele chamou-me: minha velhotinha, então, o que se passa? E eu desatei a chorar outra vez sem parar, mas agora chorava de coração cheio, o meu filho estava ali a perguntar por mim.”

“O que é que eu vi naquele ecrã do computador? O meu filho completamente nu, só de botas de couro, a meter uma seringa na pila. O que é que faz uma mãe com isto?”

E depois Eulália percebeu que aquilo tinha que mudar. E durante cinco meses tratou de se instruir, de se educar, e internou-se na Biblioteca Pública do Porto que frequentou todas as manhãs e todas as tardes, todos os dias durante cinco meses. “E li tudo o que podia ler, pedi todos os livros sobre a sexualidade, a homossexualidade, a pornografia, queria saber tudo, queria compreender. E compreendi. Hoje vejo com muita vergonha o quanto eu estava errada, o quanto eu tinha que mudar. Era eu que tinha que mudar, não era ele, era eu, ele não tem nada de mal, é homossexual, é o género dele, e depois? É ator pornográfico, é uma escolha dele, ele é maior, alguém tem alguma coisa com isso, qual é o mal? E eu mudei, quanto eu mudei! Que vergonha tenho hoje das mensagens com insultos que lhe mandei.”

Foto: Pedro Correia/Global Imagens

A que fala sempre bem

Eulália: curiosamente o nome dela bate bastante certo com ela – o pronome pessoal de dois géneros Eu, mais o sufixo que exprime a noção de palavra Lália; os dois pegados dá o substantivo feminino do seu nome grego, Eulália, pessoa de boa dicção, aquela que gosta de falar bem como Apolo, o deus grego da olímpica verdade, Eulália, a pessoa eloquente.

“Chamo-me Eulália Fernandes Almeida Soares Oliveira. Eulália é o nome que me veio da madrinha, parece antigo, não é?, usava-se naquela altura. Se me perguntar se eu gosto, eu adoro, é um nome diferente, é difícil de pronunciar nas sílabas, parece grande sendo um nome pequeno, mas é muito fácil de escrever e de recordar, não é? Sou do signo Leão e nasci no último dia de Leão antes do primeiro dia de Virgem, são duas coisas boas, sabe?, por um lado sou lutadora e por outro estou no caminho do amor, acho que já estava fadada para ser assim como sou, uma mãe leoa sempre pronta a lutar pelo amor.”

E depois Eulália continua a ilustrar o seu fado. “Sempre fui uma criança observadora, cresci no meio de muitos homens, fui meia Maria-rapaz, já me puseram o nome ‘a premonitória’ e ‘a perspicaz’ porque parece que eu adivinhava sempre o que havia de vir.” E depois conta um episódio marcante e muito real: “Aos 17 anos meti-me entre o meu pai e a minha mãe, o meu pai tinha partido uma tigela na cabeça dela e eu meti-me no meio para a defender. A partir daí, a relação de forças lá em casa mudou, a mãe passou a administrar os dinheiros e passou a mandar. Sempre fui muito desafiadora”, diz ela a ilustrar a sua formação sentimental, “tenho a rebeldia toda do meu pai e a doçura sem fim da minha mãe”.

Viseu, sessão cheia num dia de semana

O filme acaba, ficamos todos em silêncio até vermos desenrolar os créditos no ecrã e mal se reacendem as luzes a sala cheia precipita-se em palmas. É sempre assim, é a reação normal depois de se ver o filme, Eulália já sabe, segundos antes tinha procurado a bolsa que tinha aos pés e tirara de dentro dela uma bandeirinha colorida que mantinha agora pousada no regaço e afagava a alisar.

É uma noite de junho de um dia da semana e ela está sentada a meio do auditório do Instituto Superior Técnico de Viseu. “Gosto de ficar no meio da sala para poder olhar para as pessoas durante o filme, ver-lhes as caras, ver como reagem, já adivinho quando vão chorar”, e Eulália faz sempre assim desde a primeira sessão em que ficou na primeira fila de honra e daí não conseguia ver ninguém, passou o filme todo a esticar o pescoço para trás à procura de ver as caras e disse que nunca mais.

Ela levanta-se com o seu camelino loiro, os seus olhos cerrados a sorrir e põe-se a rodar de pé à frente da cadeira do cinema a agitar a bandeirinha das seis cores LGBTI, a dizer adeus e olá, e depois desce devagarinho para o palco debaixo de palmas que se calam quando ela chega e mete a mão no microfone. Já sabe a primeira frase que vai dizer e quem já a ouviu anteriormente também, e todos ficam a antecipar o modo como ela vai dizer. E ela diz aquela exclamação de afeto crescente de modo muito franco, verdadeiro e emocional: “Meus queridos, meus amigos, meus amores!” – e depois desfia o discurso que normalmente tem quatro páginas escritas na sua letra muito redondinha que escreveu na noite anterior à mão.

No fim, depois de ela tornar a agitar a bandeirinha embeiçada – tem também um lenço sedoso que lhe deu recentemente a sobrinha com o mesmo tingimento matizado das seis cores, um fio de dois cordões finos de sapatilhas que agora usa sempre atado ao pescoço, “é o meu amuleto”, e ainda uma pulseirinha de pano da liga LGBTI, Lésbicas, Gays Bissexuais, Transgénero, Intersexo -, ela responde a perguntas que não são bem perguntas, são mais desabafos partilhados e ali tirados diretamente do peito, desce do palco e é logo rodeada por dois ou três pares de pessoas que pedem para tirar selfies com ela, que lhe querem tocar, só querem agradecer.

Eulália Almeida em Vila Real, numa marcha pelos direitos gay organizada pela Catarse – Movimento Social. (Foto: Igor Martins)

“A senhora é admirável, é um espetáculo, é um exemplo a senhora, sim senhor”, diz-lhe uma mulher pequena e desembaraçada que foi àquela sessão do Cineclube de Viseu com o filho adolescente pela mão. O rapaz, muito tímido, muito efeminado, sorri envergonhado, a mãe empurra-o para Eulália, ela abre-lhe os dois braços e diz para toda a gente que ainda ali está a ouvir: “Todos merecemos o amor, meu querido, todos somos iguais, todos temos que ser cidadãos de plena cidadania, não importa o nosso sexo ou a nossa preferência sexual, todos somos normais, somos iguais, nunca deixes que te digam que não”, e o rapaz cora, diz com a cabeça que sim, tomba a cara ruborizada no ombro dela, e Eulália já está a lacrimejar.

“É isto que me enche o coração, sabe?, as pessoas que posso estar a ajudar”.

“É isto que me enche o coração, sabe?, as pessoas que posso estar a ajudar”, dirá mais tarde Eulália, um pé já metido no carro da amiga que a vai levar de Viseu de volta a casa, há de chegar já de madrugada ao seu bairro no Porto. “Não faz mal, deito-me sempre tarde, cada vez mais tarde, quando venho apresentar o filme já sei que é sempre assim, no fim há muita gente que me quer falar, quando chegar a casa ainda fico um bocado sentada, o meu marido já está a dormir, levanta-se cedo, eu também mas pronto, gosto de ficar um bocadinho no meu cantinho a refletir, vejo no Facebook se alguém me contactou, respondo, digo o que tenho a dizer, agradeço sempre e depois quando já estou mais sossegada vou-me então deitar.”

Estrela das marchas gay

“Hoje o meu filho Sydney já me ligou sete vezes”, diz Eulália toda inchada a guardar o telemóvel dentro da bolsinha de mão. “O nosso filme está hoje a passar no Japão, já me ri tanto com ele, devem estar todos a chorar, mãe, os japoneses, os japoneses também são muito chorões, ai que riqueza de filho, que alegria que ele me dá!”

Eulália está agora no Jardim da Carreira de Vila Real, é uma tarde solar de sábado e ela é a estrela de uma marcha pelos direitos gay organizada pela Catarse – Movimento Social. Traz a uma bandeira posta pelas costas como uma capa de um super-herói, uma bandeira LGBTI, “é a bandeira da marcha de Amesterdão, já lá fui com o meu filho, já marchei, trago-a sempre quando venho para estas manifestações”, diz ela a ajeitar a bandeira das seis cores.

E durante as próximas duas horas Eulália, que há de fazer outra vez um daqueles discursos, agora de pé em cima do banco do jardim, é aclamada antes sequer de começar a falar e é aclamada outra vez quando diz logo aquela frase que é tão sua, “Meus amigos, meus queridos, meus amores!”, Eulália, que segue no cortejo à frente de 200 pessoas pelas ruas da baixa de Vila Real a gritar as frases da ordem, o punho dela no ar: “Seja homem ou mulher, eu amo quem quiser” e “Nem menos, nem mais, queremos direitos iguais” e “Assim se vê a força LGBT!” E ainda “LGBT! Não finja que não vê!”.

E Eulália torna a discursar, agora na escadas dos Paços do Concelho onde a marcha vai terminar, “meus amigos, meus queridos…”, e torna a chorar, chora também a Armanda, a sua sobrinha que a levou e que também aparece no filme, chora sempre Armanda quando vê Eulália a chorar.

“Eu mudei, escancarei o meu armário, assumi-me, sou diferente, mudei pelo meu filho, agora é como se tivesse um superpoder, o poder infinito do amor.”

Eulália atualiza-nos sobre Sydney: o seu filho vive há um ano com um companheiro em Amesterdão, deixou os filmes e a pornografia, trabalha agora numa multinacional de web design. Sobre ela: dia 6 de julho vai estar outra vez na Marcha do Porto e no dia 13 há de ir à 1.ª Marcha Gay de Barcelos. De resto: continua a trabalhar nos seus inquéritos como técnica de sufrágios, faz parte há dois anos da Amplos – Associação para Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género e agora já não conversa com o seu eu de antigamente.

“Não, isso era outra mulher, já não sou eu, eu mudei, escancarei o meu armário, assumi-me, sou diferente, mudei pelo meu filho, agora é como se tivesse um superpoder, o poder infinito do amor.”

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