As relações para a vida têm os dias contados?

Psicólogos e terapeutas concordam que vivemos na era do "fast love".

O tempo dos relacionamentos para a vida já lá vai. Hoje, sobretudo entre os mais jovens, impera uma lógica de tentativa e erro. É o "fast love". Ou a monogamia em série. Mas há um lado bom nesta efemeridade do amor.

Inês Freire tem 22 anos e já passou por quatro relações amorosas. Nenhuma funcionou como pretendia. A primeira, a mais longa, até durou perto de quatro anos. “Mas éramos muito miúdos.” Desde então, todas têm sido bem mais curtas. A última não chegou a um ano – e teve umas quantas intermitências.

Dessa vez, o maior problema foi a falta de ambição do parceiro. Mas, olhando para as experiências anteriores, encontra outros problemas mais transversais: “Nesta idade, os rapazes são muito imaturos e, por vezes, isso gera conflitos de ideias”. Já para não falar que quem lhe tira a autonomia e a liberdade tira-lhe tudo. E que “nem sempre” os namorados percebem isso. Por isso, a prioridade está em conquistar alguma estabilidade profissional, até porque se encontra no último ano do curso de Comunicação Social, em Coimbra. “Só depois me vou preocupar em ter uma relação.”

O testemunho de Inês ilustra uma tendência que, garantem psicólogos e terapeutas, vai ganhando força, em particular entre os mais jovens. As relações para a vida, os namoros de anos que redundam em casamento, são cada vez mais exemplos raros de encontrar.

Em vez disso, ganham força relações mais efémeras, mais voláteis, mais “isto não está a dar e mais vale partirmos já para outra”. São as “relações de consumo rápido”, como define Ana Carvalheira, psicóloga e investigadora na área da psicologia da sexualidade. “A pessoa procura alguém que sirva os seus interesses, que encaixe nela, que goste do que ela gosta. Que adore viajar, que ligue a literatura americana. Quando acha que não encaixa, troca. É um ‘fast love’”, salienta a investigadora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), em Lisboa.

A exigência redobrada resulta, em parte, de “um processo de individualização muito marcado”. Ana Carvalheira especifica: “Há um livro de dois sociólogos alemães, chamado ‘O Normal Caos do Amor’, que aborda isso. Hoje, prima o eu sobre o nós, o indivíduo sobre o casal. Uma relação exige investimento, dedicação, exige que a esfera do nós esteja acima da esfera do eu. Por isso é que hoje os casais se unem e separam com muita facilidade”.

A isso juntam-se as atuais contingências do mercado de trabalho – tão depressa se trabalha no Porto como em Lisboa ou fora do país – e uma certa “preguiça e falta de vontade para se investir na superação das dificuldades”.

E há ainda as novas tecnologias, que podem ter tanto de bom como de perverso. Sobretudo quando se fala de aplicações como o Tinder, que potencia eventuais relações a partir de um “match” (interesse mútuo) baseado em fotografias selecionadas pelos utilizadores.

“Atualmente há redes sociais, aplicações e canais de comunicação que se multiplicam e favorecem interações que de outra forma não aconteceriam. Isso facilita bastante este ‘fast love’”, reforça Ana Carvalheira. A terapeuta de casal Catarina Mexia vai mais longe: “Os Tinders e outros que tais também contribuem para isso. Desde logo porque o anonimato faz com que sejamos aquilo que não somos e que consigamos algum entusiasmo que às vezes temos dificuldade em criar na relação. Facilita isto do ‘deixa lá ver qual é o meu valor de mercado’. O que, naturalmente, faz com que estejamos menos envolvidos na nossa relação”.

Já não há produtos acabados

Em Portugal, faltam estudos detalhados sobre o assunto. O único barómetro é o das estatísticas dos divórcios – em 2017, os últimos dados disponíveis, a taxa de separações por cada cem casamentos foi de 64,2%, números manifestamente curtos para ilustrar a tendência das relações em geral e, em particular, entre os mais jovens. Mas psicólogos, terapeutas e sociólogos não hesitam em concordar que vivemos na era da efemeridade das relações.

“No outro dia, falava com um amigo que é engenheiro informático e ele explicava-me, a propósito da programação, que hoje em dia já ninguém faz produtos acabados. As aplicações não saem completamente testadas para a rua. Vão sendo constantemente melhoradas e corrigidas. É a mesma lógica que encontro nos casais. Antes namorávamos, tínhamos tempo para testar compatibilidades, projetos de futuro. Agora a gente anda, junta-se e vai testando a relação. E às vezes a relação não funciona. Mas na prática já fizemos tudo aquilo que antigamente só faríamos se tivéssemos a noção que funcionava”, destaca Catarina Mexia.

Entre os vários “sintomas” que vai notando nos casais que recebe no consultório há um gritante, que se prende com as metas que partilham para o futuro. “Pergunto muitas vezes quais são os objetivos de vida a um ano de distância. Regra geral respondem-me: ‘Ui, um ano é muito tempo. Isso nós não sabemos fazer’. A maior parte diz que vive o dia-a-dia. Uma coisa que precisamos é de ter um envolvimento a prazo. E isso implica objetivos além dos individuais. Mas, hoje em dia, a maior parte dos casais tem imensa dificuldade em apontar objetivos além do viajar. Esse é o mais frequente.”

Um panorama bem diferente do que se verificava noutras décadas: “Antes, o objetivo era comprar uma casa, a 40 anos. Era muito tempo. Os casais tinham de encontrar estratégias para se manterem juntos, mesmo que à custa da infelicidade de alguém. Mas era um objetivo. Agora saltitam mais. É uma característica do século XXI”.

Dito isto, continua a haver relações para a vida neste século da efemeridade. Daniela Teixeira que o diga. Tem 29 anos e uma relação há 12, “um namoro de escola que, aos poucos, foi evoluindo para uma coisa mais séria”. Tão séria que já deu em casamento. “Exatamente 11 anos e 11 meses depois do primeiro beijo”, precisa.

A longevidade também se faz disto: da atenção que resiste, até nos detalhes. “O amor acontece, mas só permanece com esforço e dedicação. Se a nossa relação sobreviveu aos tumultos da adolescência e do início da vida adulta foi porque estivemos sempre dispostos a fazer com que desse certo, porque sabíamos que valia a pena”, argumenta. Mesmo defendendo que não há fórmulas para o sucesso, admite que ajuda terem “interesses em comum, mas diferenças suficientes para que as coisas continuem interessantes com o passar dos anos”. Tal como ajuda não se terem nunca privado da liberdade própria.

“O facto de namorarmos nunca foi um impedimento para deixarmos de fazer o que quer que fosse: sair à noite, ir a festas com amigos, etc. Estarmos juntos acrescentou sempre algo de novo e de muito positivo à nossa vida, nunca retirou ou nos deixou a pensar que estávamos a perder alguma coisa por causa disso”

A compreensão e liberdade mútuas mantiveram-se quando a emigração lhes bateu à porta: “Há cinco anos tive uma oportunidade profissional noutro país. O Ricardo, em vez de fazer uma cena de ciúmes, apoiou a minha decisão de ir, porque sabia que era importante para mim. Vivemos alguns meses, em duas alturas diferentes, numa relação à distância”.

Hoje residem ambos em Bruxelas, felizes. E apesar de estarem habituados às reações de surpresa entre as pessoas que acabam de os conhecer e se apercebem que estão juntos há tanto tempo, garantem que nunca se sentiram ETs por isso. “Não acho que as novas gerações sejam menos dadas a relações longas. Acredito é que existe um conformismo menor em relação a viver numa relação infeliz. No passado as relações eram mais longas, mas não necessariamente mais felizes. Eram as normas sociais e a vergonha em assumir que um projeto de vida falhou que mantinham muitos casamentos de pé. Agora, os jovens não estão dispostos a estar numa relação que deixou de ser feliz só porque parece bem. E isso é bom.”

Da mulher-natureza a mulher-indivíduo

Maria Isabel Dias, professora de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, aponta no mesmo sentido. “Hoje, as pessoas estão na conjugalidade na busca desta dimensão da felicidade plena. Quando sentem que não são felizes, ou que as dimensões do ponto de vista dos planos pessoal, amoroso ou sexual não são preenchidas, partem em busca de uma nova relação. Os sujeitos perspetivam a vida em comum numa lógica de alcançar a felicidade. Por isso é que há muitos divórcios, mas também há muitos recasamentos.”

É a monogamia serial ou monogamia em série. A especialista em sociologia da família e do género aponta ainda outros fatores, que começam a mudança de paradigma ocorrida a partir dos anos 1970: “A noção de mulher-natureza, condicionada às suas funções biológicas, foi substituída pela conceção de mulher-indivíduo, e isto conduziu a uma mudança de valores e comportamentos. Não só a mulher tem mais direitos como conquista maior autonomia. O facto de as mulheres trabalharem e serem autónomas também lhes veio conferir maior liberdade para porem termo a uma relação em que são infelizes. Além disso, é importante salientar que o divórcio deixou de ser alvo do estigma que era antes do 25 de Abril. A noção de casamento mudou. Deixou de ser para toda a vida e é cada vez mais encarado como um contrato”.

Também por isso se agudiza a necessidade de mimar constantemente uma relação. Catarina Mexia, terapeuta de casal, fala disso mesmo, em jeito de guia para um final feliz. “Tenho muita gente que me diz: ‘Eu quero voltar à altura X’. Mas depois da carne picada, já não podemos voltar ao bife. As pessoas mudam e as relações evoluem. Se não estamos atentos a isso, e não acompanhamos essa evolução, perdemos o comboio. Temos de combater isso, estando atento ao outro, criando intimidade. E a intimidade não tem só a ver com o sexo. Tem a ver com momentos em que vamos partilhando com o outro as nossas necessidades e os nossos sonhos, que vão evoluindo. Se não o fizermos, a certa altura temos um estranho ao nosso lado.”