Motéis: histórias com cama redonda e espelhos no teto

Um homem que chega sozinho e sai sozinho de um quarto de motel. Uma mulher que confessa a pimenta que mete no casamento. Outro homem que vai repetidamente dar facadas e que conta a história do primeiro motel e dessa revolução. São três relatos atuais à volta do Porto. O negócio, esse, não pára de prosperar.

Ricardo vai em meados de 40 e queria contar tudo com excruciante detalhe, a hora e a estrada por onde seguia, o tempo que demorou, o tempo que fazia, o que via, o que imaginava que ia ser, o que foi lá fazer e afinal o que sucedeu. Deteve-se a detalhar a música que meteu para acompanhar, uma mistura inebriante de psicadelismos que pareciam ter nascido numa garagem dos anos 1960, jazz eletrónico de vanguarda, coisas sensoriais, com vento, atmosferas de programas de rádio paranormais, noites a grande velocidade na estrada sem fim de um deserto misterioso.

Chegou sozinho, ela iria lá ter, meteu Tony Price e o “Celica Absolu”, veio a música do infinito e do desvinculado, começa justamente com um motor a cilindrar, um motor nu, e depois segue suave em chispas e centelhas numa névoa de metais a tremular, cresce, encorpa-se, ganha gula, sofreguidão, deixou-a correr, repetiu-a, veio mais outra, e quando estava a chegar ao fim da “Heavy Jasmine” e começava a dar aquela parte que parece um solo de várias baterias no “Whiplash”, um filme sobre os caminhos, os limites para a grandeza e a síndrome do túnel do carpo, chegou à entrada do motel. Estava impaciente, evidentemente, e aguardou.

Era a sua primeira vez e não era como vinha a imaginar. Ainda era de dia, a hora do lusco-fusco da tardinha, é diferente o crepúsculo do dilúculo, mas ele não iria ficar para ver a manhã alvorecer. Esperou uns minutos, compôs várias coisas nos bolsos e no braço do banco para se fingir ocupado, voltou a pôr os óculos de sol que tinha tirado e sentiu-se estranho naquela espera que dá acesso à rampa, ao lado da estrada, não viu ninguém, não passou ninguém, mas sentia-se vigiado sem saber porquê. E esperou.

Ao fim de 15 minutos mandou uma mensagem pelo WhatsApp a perguntar. Nada. E uns minutos depois outra com dois pontos de interrogação e depois outra com pontos a dobrar a mesma interpelação, depois exclamações, e depois nada. Não pensou, não ia ficar ali no carro, o melhor seria entrar.

Enfiou pelo arco branco que anunciava Motel Emoções, escolheu o Emoções de Santa Maria da Feira por ser distante do Porto e por ter o nome mais vago dos 15 motéis à volta do Porto, e avançou a deslizar lentamente por entre as luzes de glóbulos vermelhos que se acendiam nas curvas e as estátuas seráficas brancas, nuas e pequenas, decoradas com bandeirinhas de Portugal, até chegar à receção.

Um menu como no “drive thru”

O guiché é uma janela de vidro opaco preto com duas ranhuras, um gavetão de metal por baixo e um ecrã iluminado a letras vermelhas e violeta com um menu de sete opções à altura dos olhos, muito semelhante aos menus do “drive thru”. Baixou o volume do rádio do carro, leu a promoção: Suítes Lovers, Romeu e Julieta, Adão e Eva e Paixão têm desconto válido para as entradas das 8 horas de domingo às 20 horas de sexta-feira, duas horas 39 euros, quatro horas 49 euros, 12 horas 69 euros, sorriu com a parte esquerda da boca, 24 horas 115 euros. Das sete opções, a mais barata por duas horas é a Suíte Eco a 30 euros e as mais caras são a 59 euros, a Fly, a Dance Room e a suíte que tem um colchão de água, luzes azuis e fotografias da Sophia Loren quando era nova gravadas num espelho por cima da cama, como tinha visto na internet. Baixou o vidro do carro.

Boa noite, já escolheu?, perguntou uma voz que ele não via vinda de trás do vidro. Respondeu que queria o quarto da Sophia Loren e segundos depois a voz abriu o gavetão que continha uma chave com o número 113 que ele agarrou esticando o braço pela janela do carro. Recolheu-a, atirou-a para o banco vazio ao lado, disse boa noite e obrigado, depois de a voz lhe dizer que o pagamento é à saída, e seguiu pela curva de arbustos de pinho aparado, a apontar os faróis do carro à parede que refletia de branco as setas e números que dividiam as suítes para cada lado. Meteu pela esquerda, entrou num pátio interior rodeado de garagens com portões fechados e primeiros andares com janelas de cortinas corridas, como se fosse um condomínio muito hermético, e viu uma garagem que se abria ao fundo para onde se encaminhou e estacionou. O portão fechou imediatamente desencaracolando-se do teto.

O clique do alarme fechou as portas e o vidro do carro e ficou a ecoar no silêncio da garagem. Encaminhou-se para a outra porta com o telefone e a chave do quarto na mão, abriu-a, estava destrancada, subiu as escadas de luz progressiva a olhar para o teto onde se revelava um céu espesso de penas douradas que abanaram quando lhes soprou e assomou a outra porta. Abriu-a com a chave, entrou, enfiou o cartão branco que também vinha pendurado na ranhura da luz à direita e o quarto iluminou-se de azuis negros e néones e mostrou o busto da Sophia Loren a olhar do alto de uma grinalda de diamantes. Ela tem um olhar inclinado, como um desafio sombrio, e é um daqueles olhares com olhos que nos seguem para todo o lado, parece que os olhos estão vivos, os olhos depois do golpe de “Five Miles to Midnight” e da fronteira da noite onde ela corre com o Anthony Perkins, foi em 1962, em Paris, dois anos depois do “Psico”, talvez ele ainda não soubesse com exatidão que ele e o motel dele, o mais assustador sarcófago cinematográfico de sempre, iriam ficar gravados para a eternidade no top do hipocampo mundial, com gritos da cortina de um chuveiro a abrir, são olhos que nos seguem para todo o lado de onde quer que se olhe ela a olhar, as mãos no peito, de lauréola, nome de Dafne, de trovisco e das timeleáceas venenosas.

Sentou-se na cama, ondulou, escreveu 113 no ecrã do Android, carregou no ícone verde de enviar mensagem do WhatsApp e depois deixou-se cair desamparado para trás e ficou a ver-se ali refletido noutro espelho do teto, de braços abertos, derramado, a ondular.

Já tinha passado quase uma hora desde a hora marcada com ela, ela é uma colega de trabalho, são ambos solteiros, ou melhor, ele é solteiro, ela é separada, foi ali que combinaram que se iam encontrar, era a primeira vez, no Emoções, Nogueira da Regedoura, acima da Goda, do Godo e de Ermil, ao lado da A41, e agora, no meio daquele silêncio cerúleo neónio, Ricardo não sabe o que há de fazer. Sem saber porquê pensou em Tom Hanks a naufragar sozinho naquela cena lancinante em que ele perde a bola de vólei Wilson em alto mar. E nada.

Outra hora depois, ou uns minutos antes para a tarifa do quarto não duplicar, Ricardo haveria de sair sozinho no carro por outro caminho oblíquo do motel sem ver ninguém. Parou paralelo em ponto morto noutro guiché igual ao primeiro, isto é só com voz e gavetão, e a voz fez logo sair um terminal TPA sem fios que ele agarrou depois de ter passado o cartão. Clicou OK, 59 euros, digitou quatro números, outra vez OK, e esperou pelo barulho do papel a imprimir, que depois rasgou, guardou e arrancou no carro.

Durante o caminho todo até ao Porto, outra vez com Tony Price a bramar, a música parecia que tinha cio, uma guitarra altissonante, ele a alastrar sílabas coladas, exaltadas, “I prefer Coca-Cola”, e durante todo o caminho, metido debaixo daquele som retro elétrico, a esvoaçar de janelas abertas na A41, pensou como é que no dia seguinte, quando a voltasse a encontrar, como é que ia fazer para se vingar. Dezassete minutos depois no Google Maps, chegou a casa contraditado e sem qualquer conclusão. Viu três episódios seguidos do Ray Donovan na Apple TV, ceou uma comida esquecida fria, e depois pôs-se à varanda, o arco da ponte branca iluminado, a igreja da Afurada cintilando, a coriscar, parecia que derretia no rio, e ficou ali insone a fumar.

O bolo não pode ficar sem uma cereja a coroar

Isabel fala cheia de brancura e explica logo porquê: pimenta ou piripíri ou os condimentos que cada um quiser, isto é como na comida, e ela sorri a pensar na analogia, se não temperarmos aquilo que estamos a comer, a comida é sempre igual e depois ninguém come e depois começam todos a comer fora. Ela arca o pé de unhas pintadas de cinzento Porsche baço, um pé bem tratado, alonga os dedos, pestaneja longamente e um segundo depois lança uma canora gargalhada que enche a sala de claridade.

É uma casa nos arredores de Aveiro metida no meio de um bosque que podia ter duendes, animais encantados e festas ocultas de zíngaros e romanis porque às vezes ouve-se na brisa, depende para onde sopra o vento, umas ladainhas e umas cantorias, e as vozes terminam as frases em oitavas agudas musicadas sempre a subir.

Tem 55 anos, Isabel, está junta com Paulo há mais de uma década, ambos saíram de casamentos gorados, ela tinha 43, ele é dez anos mais novo, vivem juntos desde 2006, a família são mais quatro filhos naquela casa ensolarada, um par de 22 anos e 26, vivem ambos com ela, são do casamento anterior, e 18 anos e 24, estes dois são dele, vivem ali tão bem. Temos uma relação muito boa, muito franca, muito aberta, eu falo de tudo com os meus filhos, diz Isabel a soprar um bafo muito fino de fumo para o ar, de tudo, não sou só mais uma amiga deles, sou a mãe deles, dos outros dois do Paulo também, de tudo, da primeira ida à discoteca, do primeiro namorico, da primeira vez que alguém lhes partiu o coração, do sexo, das ganzas, do álcool, tudo, não há nada de que não possamos falar.

Terá sido quando a relação de Isabel e Paulo já ia para sete anos, ou talvez fosse muito antes, não houve nenhuma crise, não se lembra, nenhuma mudança nítida a assinalar, que ela começou a falar nos temperos. Por ele nem era preciso nada, ele sempre foi muito aceso, diz ela, muto mais, é mais novo dez anos que eu, aos 50 o apetite não é o mesmo dos 40, eu até faço reposição hormonal, é uma pomada vitamínica personalizada para mim, passo-a no pulso uma vez por dia, mas já não é a mesma coisa, é a idade, diz ela a sorrir sem qualquer agonia, e depois conta porque é que quis levar o seu homem a um motel.

Ele fazia anos. Deixaram os filhos em casa, foram jantar a um sítio especial, vieram ostras numas bandejas largas de prata, depois vieram vieiras, depois a pele crocante do leitão, saíram os dois cheios de riso frisado, abraçados, um bocadinho entornados. Meteram-se no carro de volta a casa, muito devagar, a prezar a noite temperada e as estrelas que crepitavam no seu bosque particular. Mas faltava qualquer coisa, reconta Isabel, como um bolo sem cereja, e ela disse para si mesma já sei. Correu ao quarto, voltou à sala com uma venda vermelha de veludo, ele tinha o olhar intrigado, ela laçou-lhe a cabeça para o vendar. Dá-me a mão, eu levo-te, não digas nada, diz ela a recordar o riso dele, a encaminhá-lo de volta ao carro vendado, a meter-lhe a mão na cabeça como se faz nos filmes de polícias quando o polícia prende o ladrão e lhe deita a mão na nuca para o bandido se baixar, e arrancaram outra vez os dois. Deram umas voltas desnecessárias para ele se baralhar, foram só mais uns minutos, mais risada, e quando começam a subir a rampa do Eclipse Motel ela pergunta-lhe, sabes onde estás? E ele, eu conheço-o, diz ela, tem o sentido de orientação dos pombos, sabe sempre onde é que está, e ele diz desassombrado, meio matreiro, que estavam a subir para o motel do astro ocultado.

Foi uma noite maravilhosa, Isabel rememora, agora o bolo já tinha a cereja a coroar, tem que ser assim, não se pode comer sempre da mesma coisa, nem sempre da mesma maneira, não se pode rotinar, gastámos 100 euros em duas horas, é um investimento muito bom, é salutar, é melhor do que ir à marisqueira, é melhor do que gastá-lo numa garrafa de Moet & Chandon.

O motel é uma metáfora do individualismo e da tentação

Herberto é divorciado, fez 40 anos na semana passada, é de Gaia, foi criado com jesuítas, trabalha em arquitetura, tudo o que lê são só poemas, os motéis deviam ter todos na cabeceira da cama livros de poesia, maços de poemas, diz ele, poemas, é o único adereço que lhe convém, sexual e intelectual. Ele começa a desfiar e vai contá-los, são muitos motéis, já foi a Habana, a Bora Bora e ao Havay, foi aí que fez a prova das dez tentações, uma olimpíada de 12 horas, 220 euros, a suíte é um decálogo sexual, foi uma maração, levou cocaína, dez tentações, é uma via-sacra sexual, até tem uma parede onde nos amarramos de pernas e braços abertos em cruz, sim, se calhar é uma heresia, diz ele a rir um riso cascalhado, a falar na cama redonda giratória, na piscina interior do quarto com cascata, debaixo de água, de joelhos no chão, contra a parede, cocaína, sem parar, até num baloiço com umas tiras de enfiar, sem parar, ele repete, uma maração. E Herberto foi ainda ao Tropicália, foi ao Flamingo, foi ao Silk, até já foi ao Alto de Valongo, foi só uma noite, não se recorda porquê, já os correu todos mais do que uma vez ou do que três, mas prefere o Portofino, o motel do Porto menos parecido com um motel, é muito sóbrio, sem kitsch nem quinquilharia vintage, soalhos de madeira, paredes brancas quentes, padrões em cores de terra, bambus e seixos brancos frios. E a seguir ele conta quais são as diferenças entre o motel e o hotel, sai-se com uma piada bem apanhada, o motel é um hotel com piripíri, mas antes vai começar por perguntar o que é uma casa.

A casa é uma coisa perene, é um símbolo que não se interrompe, a casa demarca, é uma moldura de continuidade e lá dentro, à frente do flash, está a família. Um hotel é uma sociedade em miniatura debaixo da temporalidade da mesma estância, tem grandes salões onde todos somos vistos, onde todos vamos para que todos nos possam ver. O motel, com a sua situação à beira da estrada, posto nas encruzilhadas onde o destino pode subitamente mudar, é muito diferente, não tem salões sociais, é uma metáfora do individualismo, dos indivíduos freneticamente livres, da aventura e da tentação, e ele completa, e é ainda uma metáfora da angústia e da alienação, sobretudo no imaginário dos motéis do cinemascope americano, que é o imaginário que todos temos.

Sabe a história toda, Herberto, do primeiro motel da história que abriu, foi nos anos 1920, a meio caminho entre Los Angeles e São Francisco, em San Luiz Obispo, era o Motel Inn, acho que ainda está aberto a funcionar, foi arquitetado por Arthur Hineman, um apaixonado por renascentismo espanhol, foi ele que imaginou tudo, e foi assim que todos os motéis se fizeram, é assim até hoje em todo o mundo, foi o cinema americano que os propagou e os colou na nossa imaginação, aquele motel era um motor-hotel, os bangalôs todos dispostos à volta de um pátio em U em que se entra e se sai de carro, vai-se sempre ao motel de carro, não é normal ir lá a pé, cada um tem o seu “auto court” para estacionar. No Brasil, continua ele, os motéis vieram nos anos 60, cresceram como cogumelos nos cruzamentos durante a ditadura militar, introduziram a tarifa horária, até aí só havia a diária, são hiper-populares até hoje, se bem me lembro são bem mais baratos do que cá. Cá os motéis só chegaram nos anos 90, foi preciso deixar passar abril até abril ter tempo para tornar a passar, foi preciso deixar cair Salazar, é assim, somos um povo lento até na revolução, os nossos motéis medraram no Cavaquistão, é verdade, parece ironia, eles apareceram quando Cavaco, um conservantista, cobriu o país todo de asfalto e de betão. O primeiro foi o Príncipe Encantado, na Mealhada, lembra-se Herberto, não, a esse por acaso nunca fui, mas sei a história, li numa tese de arquitetura, interesso-me pelos motéis, esse foi o primeiro, acho que abriu em 91 ou 92, acho que continua aberto e ainda está a funcionar.

Tirando aquela vez das 12 horas, Herberto foi sempre aos motéis à tarde e sempre com mulheres casadas, tirando uma vez que foi de noite, foram quatro horas, porque o marido dela estava para sair mas nunca mais saía de casa. Claro que dá muito mais pica se eu for ter a casa delas, é um picante por cima do pecado, diz ele, mas quase nunca dá, é arriscado, e ele não vai em filmes, diz que é por isso que nunca foi, nem nunca há de ser, um amante que se deixa apanhar. E Herberto torna a sorrir um sorriso oblíquo, só com a parte esquerda da cara.