Micaela Miranda, uma atriz na Palestina: «Contar histórias é resistir»

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotografias de Pedro Granadeiro/Global Imagens

Em miúda, subia às árvores, aprendia solfejo e piano, andava na dança, na patinagem artística, na ginástica. Passava horas ao espelho a criar personagens e noites a ler com uma lanterna debaixo dos lençóis. Lia tanto que quase não dormia e levantava-se maldisposta para ir para a escola.

Na escola primária, estava na linha da frente de um jornal clandestino. Juntava as páginas A5 escritas pelos colegas que contribuíam com críticas à professora, anedotas, coisas engraçadas. Escrevia e desenhava quando achava que a matéria merecia ilustrações. O objetivo era chegar à página cem. Correu mal.

A professora apanhou-a com o jornal e perguntou-lhe se tinha feito tudo sozinha. Respondeu que sim e levou três reguadas por não estar atenta à aula. Os colegas recuaram e o jornal não continuou. No 10º ano, com uma amiga e a professora de Inglês, formou o primeiro núcleo da Amnistia Internacional em Santa Maria da Feira, na altura dos massacres em Timor.

«Na Palestina, esse teatro [o Freedom Theatre] tem um impacto maior porque é uma forma de canalizar histórias que não estão a ser ouvidas. Contar histórias é resistir.»

Mergulhou na internet, retirou fotografias de torturas e organizou uma exposição no liceu. O teatro esteve sempre por perto. O inconformismo também. «O teatro estava lá, nessa coisa de organizar e orquestrar, os comentários sobre o que está a acontecer, as histórias, as narrativas», diz.

Micaela Miranda, 35 anos, mãe de duas filhas pequenas de 7 e 3 anos, de Santa Maria da Feira, estudou Interpretação na Escola Profissional da Academia Contemporânea do Espetáculo, no Porto, e Análise do Movimento – Teatro Físico na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris.

Encenou, interpretou e produziu várias criações em França, Brasil, Itália. Criou uma companhia de teatro na Irlanda e em 2008 estava no Freedom Theatre, no campo de refugiados de Jenin, na Palestina, na parte norte da Cisjordânia, uma das áreas mais afetadas por décadas de ocupação israelita e por conflitos internos.

É um teatro comunitário que acredita que as artes têm um papel crucial na construção de uma sociedade livre. «Na Palestina, esse teatro tem um impacto maior porque é uma forma de canalizar histórias que não estão a ser ouvidas. Contar histórias é resistir porque, no fundo, a única coisa que temos é poder contar a nossa história da forma como a vivemos. É a única justiça que podemos fazer a nós próprios», diz.

A 15 de maio, o Freedom Theatre assinalou com os palestinos o Nakba, que recorda os trágicos dias – durante e depois da ocupação israelita, em 1948 – em que mais de 800 mil palestinos foram expulsos de suas casas.

Tendo como pano de fundo os recentes acontecimentos na Faixa de Gaza, o coletivo tem em cena em Jenin uma peça sobre o Nakba. Uma performance que é uma reflexão sobre a história, a violência, o dia em que milhares de palestinos se tornaram refugiados e o que pode ser feito para resolver o conflito.

O Freedom Theatre é uma comunidade alternativa dentro de uma comunidade conservadora. Com raides militares, com jovens que querem ser mártires e com rapazes e raparigas que aprendem teatro.

Micaela Miranda acredita que a expressão artística é uma parte da luta pela justiça, igualdade e liberdade. «É uma plataforma de resistência cultural». O Freedom Theatre tem um programa intensivo de teatro de três anos, oficinas de teatro para crianças e jovens, formação em direção de cena, fotografia e escrita criativa.

Micaela Miranda chegou ao Freedom Theatre depois de ler um artigo de jornal sobre este teatro na Palestina. Pensava ficar um ano, ficou mais tempo.

É um teatro que coloca em palco questões sociais e políticas da Palestina contemporânea. E tem um autocarro que circula pela Cisjordânia. O veículo parte com atores disponíveis para ouvir histórias das comunidades locais. Teatro interativo e itinerante, exemplo de ativismo cultural com um intenso trabalho de campo.

«Como forma de resistência cultural, tínhamos de pegar nas histórias, trabalhá-las, para mostrá-las na comunidade seguinte, porque estas estão separadas por check points, por colonatos, e muitas vezes não sabem da situação umas das outras. E difere conforme a geografia. Há as que têm os ex-colonos em cima da cabeça, que lhes roubam os rebanhos, assediam as crianças a caminho da escola, usam gás lacrimogéneo, têm mártires, não sabem uns dos outros.» O autocarro parte, escuta histórias, e improvisa-as em centros culturais, em rotundas no meio da cidade, em tendas, na rua.

Micaela Miranda chegou ao Freedom Theatre depois de ler um artigo de jornal sobre este teatro na Palestina. Pensava ficar um ano, ficou mais tempo. Conheceu o marido, Nabil Alraee, agora seu diretor artístico, músico, ator, encenador e escritor, que um dia desobedeceu ao recolher obrigatório da segunda Intifada para estudar teatro em Gaza.

Nabil assumiu a direção depois de o ator e cineasta Juliano Mer-Khamis, fundador do Freedom Theatre de ascendência judia e cristã, ter sido assassinado à queima-roupa à porta do teatro. Morreu baleado por um homem de cara tapada em abril de 2011. Mas o seu projeto não morreu. Pelo contrário, ganhou raízes e consolidou-se.

«A nossa missão é fazer teatro profissional que esteja ao nível de qualquer outro teatro no mundo e isso é uma grande mensagem de humanidade.»

«No início, enfrentámos dificuldades. As pessoas nem sequer faziam ideia do que estávamos para ali a fazer, rapazes e raparigas, tudo junto. Hoje há um respeito, antigos alunos apareceram na televisão, houve quem aparecesse em filmes em Hollywood, quem criasse companhias, quem trabalhasse com os seus filhos, e a comunidade foi ficando cada vez mais informada sobre o que fazemos.»

Micaela foi absorvendo experiências em Jenin. Uma das coisas que aprendeu na Palestina é que tudo é possível. Há sempre esperança. Há sempre vontade de viver. «A nossa missão é fazer teatro profissional que esteja ao nível de qualquer outro teatro no mundo e isso é uma grande mensagem de humanidade. De uma forma geral, os palestinos são tão desumanizados, sobretudo nos media… O problema da Palestina é que toda a gente a põe no canto daquilo que nunca se há de resolver. O nosso trabalho é de resistência, de consciência e crítica e as nossas ações podem ser aplicados em qualquer sítio. A Palestina é apenas um exemplo das muitas resistências que acontecem no mundo. E é importante ligar tudo porque cria-se uma rede de pessoas que estão a resistir em todo o mundo», acrescenta.

«Conheço bem a realidade dos refugiados palestinos e depois há todos os outros refugiados. Tenho de usar esse conhecimento, chegar aos outros lados e perceber.»

A experiência e a especialização profissional em Paris, o currículo, e o percurso, deram-lhe equivalência para se candidatar ao mestrado em Movimento, Direção e Ensino na Royal Central School of Speech and Drama, em Londres. Concorreu, entrou, está no primeiro ano.

Essa procura pelo lado mais internacional tem que ver com a sua herança, a sua identidade, a experiência em Jenin, como mulher, atriz e estrangeira na Palestina. O mestrado é uma reflexão sobre o seu trabalho. Refletir o corpo, as influências do contexto social, político e pessoal que coexistem com o corpo.

«Há qualquer coisa não-verbal que começou a surgir no trabalho que fazia. No fundo, as políticas são influenciadas pelos nossos corpos, pela forma como nos movemos na sociedade, as distâncias, e a comunicação não-verbal que acontece.»

Em Londres, sente-se em casa. Fala português, inglês, francês, árabe, italiano, espanhol, percebe culturas de várias geografias. Anda a trabalhar num espetáculo biográfico baseado na sua experiência na Palestina e a questão dos refugiados é um tema sempre presente. «Conheço bem a realidade dos refugiados palestinos e depois há todos os outros refugiados. Tenho de usar esse conhecimento, chegar aos outros lados e perceber.»

«As decisões políticas afetam a vida das pessoas e as pessoas podem afetar decisões políticas. A viagem é entre estas três dimensões: individual, real e política.»

É uma aprendizagem constante e, por vezes, espanta-se com o que escuta, que os refugiados são terroristas, que vêm roubar empregos. «A viagem que essas pessoas tiveram de fazer, as coisas que deixaram para trás, a sobrevivência a coisas terríveis, e mesmo assim há tanta falta de empatia.»

Trump, Palestina, manifestações em Jerusalém. A atriz não é especialista em narrativas políticas, fala ancorada na sua experiência. «As decisões políticas afetam a vida das pessoas e as pessoas podem afetar decisões políticas. A viagem é entre estas três dimensões: individual, real e política.»

Criar, interpretar, resistir, ensinar, aprender. Durante o mestrado, Micaela tem pensado no que quer fazer. Criar uma escola móvel de teatro de resistência, com duas amigas que também têm trabalho internacional em teatro, é uma vontade que lhe acompanha os dias.

Voltar à Palestina? Micaela não faz planos a médio ou longo prazo. Um dia de cada vez. Tudo em aberto. «O futuro logo se vê.»

O corpo como instrumento

O teatro conta histórias, muda vidas, é uma forma de resistir, obriga a olhar para dentro. «Os artistas têm de ter um fundamento crítico para poderem ver-se a si próprios, mas nem todos são capazes de o fazer. E isso tem que ver com o treino que se faz. Hoje, há escolas que treinam para a indústria e a indústria é capitalizada, tem a sua própria propaganda. E um ator entra e desenvolve o que podemos chamar um treino dócil, o corpo é um instrumento.» Não é bem assim, o corpo tem uma história. E essa é a diferença entre o teatro de propaganda, integrado no sistema capitalista, e o teatro de resistência. «A mudança que é feita no teatro é uma mudança que começa no indivíduo. E é uma coisa lenta», diz Micaela.