Há dias cheguei a casa e tinha-me esquecido da tostadeira ligada. Estava tudo intacto, no sítio, mas lembrei-me de que foi a segunda vez que cometi o mesmo erro – com mais de um ano de diferença, mas ainda assim a segunda vez.
A primeira distração acontece a qualquer um. A segunda acontece a quem realmente tem queda para disparates deste calibre. Fiquei alguns minutos irritada comigo própria. Depois desatei a rir às gargalhadas, não sei se para dentro ou mesmo a sério, porque me imaginei a ficar igualzinha à minha mãe.
Nunca nos sentimos com a idade que temos, mas percebemos que os anos estão realmente a passar quando detetamos em nós tiques e comentários dos pais. Ou quando a nostalgia e as frases feitas sobre a rapidez com que o tempo passa começam a dominar-nos excessivamente o discurso.
De repente passamos por uma miúda de umbigo destapado em pleno inverno e pensamos: «Esta malta nova nunca se agasalha devidamente.» E no segundo seguinte percebemos que estamos cotas, ou que somos do século XX, como me dizem os miúdos quando me querem recordar que não percebo nada da geração XXI.
O problema é que na nossa cabeça achamos que isto das clivagens geracionais e da passagem do tempo só afeta os outros. Nós iremos conseguir manter sempre a frescura, a abertura à novidade, a limpidez na forma de olhar o mundo, a curiosidade, todas essas coisas que tornam divertido ser gente.
A desconfiança, o receio da mudança, o pessimismo, são características de Velhos do Restelo. E esses são sempre os outros.
Ainda não tenho idade para me sentir a envelhecer. E no entanto a idade é lixada, porque é em grande parte mental. Há pessoas de 30 anos cheias de teias de aranha na cabeça. E pessoas de 80 mais leves do que qualquer jovem.
Ainda assim o tempo não passa por nós sem deixar marcas. E ainda bem, porque é sinal de que o mundo gira devidamente e que ao crescermos aprendemos. Nalgumas coisas tornamo-nos excessivamente cautelosos. Noutras desconfiados.
É provável que a memória que sempre considerámos ótima comece a pregar partidas. E que os amigos dos filhos comecem a ouvir-nos com um ar entediado. O reverso da medalha é que aprendemos a valorizar intensamente coisas mínimas. E com sorte tornamo-nos mais sábios se soubermos encarar o tempo sem medo nem azedume. Só o azedume faz envelhecer a alma.
Tenho um amigo bibliotecário que passa uma boa parte da vida ao volante, a percorrer aldeias de moradores envelhecidos no concelho de Proença-a-Nova. A bibliomóvel leva livros e jornais às pessoas, mas transporta igualmente palavras e companhia. E nesse movimento o meu amigo assegura que recebe tanto como dá.
Nunca me esqueci de uma vez em que falávamos do contacto com os mais velhos e com a sua sabedoria e ele recordou a explicação de um deles sobre a idade: «Eu não sou velho. Tenho é muitas juventudes acumuladas.»
Sempre que penso no desafio da eterna juventude e no quanto detestaria alguma vez deixar que o azedume tomasse conta de mim, lembro-me dessa frase. E do permanente percorrer de estradas, bifurcações, caminhos que nunca deixam de se abrir à nossa frente. Livros, movimento e juventudes acumuladas: bate tudo certo.